Miguel Medeiros quoted Brasil by Lilia Moritz Schwarcz
Existem ainda outras facetas que fazem parte da cara (e da expressão) do país. Sarcástico, Lima Barreto termina seu texto em tom de desabafo: “Tenazmente ficamos a viver, esperando, esperando… O quê? O imprevisto, o que pode acontecer amanhã ou depois; quem sabe se a sorte grande, ou um tesouro descoberto no quintal?”. É a essa mania nacional de procurar pelo milagre do dia, pelo imprevisto salvador, que o historiador Sérgio Buarque de Holanda, em seu clássico livro Raízes do Brasil, de 1936, chama de “bovarismo”. Aliás, a palavra foi usada também pelo literato carioca, que a partir do mesmo conceito desfaz de nosso vício de “estrangeirismo” e de “tudo copiar como se fosse matéria-prima nossa”. Já Buarque de Holanda afirma que o conceito se refere a “um invencível desencanto em face das nossas condições reais”.
O termo tem origem na famosa personagem Madame Bovary, criada por Gustave Flaubert, e define justamente essa alteração do sentido da realidade, quando uma pessoa se considera outra, que não é. O estado psicológico geraria uma insatisfação crônica, produzida pelo contraste entre ilusões e aspirações, e, sobretudo, pela contínua desproporção diante da realidade. Imagine-se, contudo, o mesmo fenômeno passado do indivíduo para toda uma comunidade, que se concebe sempre diferente do que é, ou aguarda que um inesperado altere a danada da realidade. Segundo Holanda (e Barreto), brasileiros teriam um quê de Bovary.
— Brasil by Lilia Moritz Schwarcz, Heloisa Murgel Starling (Page 16)