sol2070 reviewed Meridiano de Sangue by Cormac McCarthy
Pesadelo inesquecível
5 stars
( sol2070.in/2025/03/livro-meridiano-de-sangue-cormac-mccarthy/ )
Talvez o romance mais chocante que já li: "Meridiano de Sangue" (1985), do estadunidense Cormac McCarthy. Não apenas pela violência extrema, mas também pela ambientação e ideias que transmite. Um mergulho em uma construção infernal das áreas limítrofes entre EUA e México no século 19, como sendo um tipo de concentração das violentas forças existenciais dominantes do mundo — que estão na base da formação de um império, ainda muito presentes hoje.
A estória choca por causa disso: a existência é retratada assim, como algo brutalmente sanguinário, praticamente maligno, que convida à amoralidade. Se fosse só isso — uma violentíssima ficção niilista de maestria literária, como algumas apontam — talvez não tivesse continuado a leitura. É muito mais.
Acompanhamos o “rapaz”, com 16 anos no início da estória, que se junta a um bando de mercenários estadunidenses contratado para matar indígenas entre EUA e México lá por …
( sol2070.in/2025/03/livro-meridiano-de-sangue-cormac-mccarthy/ )
Talvez o romance mais chocante que já li: "Meridiano de Sangue" (1985), do estadunidense Cormac McCarthy. Não apenas pela violência extrema, mas também pela ambientação e ideias que transmite. Um mergulho em uma construção infernal das áreas limítrofes entre EUA e México no século 19, como sendo um tipo de concentração das violentas forças existenciais dominantes do mundo — que estão na base da formação de um império, ainda muito presentes hoje.
A estória choca por causa disso: a existência é retratada assim, como algo brutalmente sanguinário, praticamente maligno, que convida à amoralidade. Se fosse só isso — uma violentíssima ficção niilista de maestria literária, como algumas apontam — talvez não tivesse continuado a leitura. É muito mais.
Acompanhamos o “rapaz”, com 16 anos no início da estória, que se junta a um bando de mercenários estadunidenses contratado para matar indígenas entre EUA e México lá por 1850. O livro é considerado um romance histórico, pois a gangue existiu de fato e há uma reconstrução factual rigorosa do período, acontecimentos e algumas pessoas-chave. Apesar disso, não soa como um romance de época, nem mesmo um western. Essa é uma especialidade do escritor: suas estórias parecem atemporais e universais.
Uma dificuldade que tive no início foi a repelente violência do próprio rapaz. Contudo, vai se transformando, em um processo sutil, não muito claro — principalmente porque McCarthy nunca mostra os pensamentos de seus personagens, outra de suas marcas —, até mudar completamente ao final do livro.
A linguagem é mítica, quase bíblica, realizando a façanha de fundir uma aventura de faroeste com horror cósmico, sem precisar invocar nada sobrenatural ou monstruosamente alienígena. O consagrado crítico literário Harold Bloom chama "Meridiano de Sangue" de “o autêntico romance apocalíptico norte-americano”, colocando a obra entre as maiores do século 20.
A trupe assassina vai passando por vilas arruinadas pela fome, doença, miséria ou a selvageria generalizada de grupos norte-americanos, mexicanos, mestiços ou indígenas. Não há mocinhos e bandidos, apenas predação, exploração, embriaguez e demência obstinadas.
Apesar de a espiritualidade ou elementos fantásticos estarem ausentes, a qualidade mitológica desse mal assolando tudo cria uma aura pseudo-sobrenatural. Chegam a aparecer estranhas luzes, brilhos ou fogos, mas não sabemos se é fruto de visões ou surtos, tamanha a insanidade que paira.
A personificação de todo esse mal é o Juiz Holden, o segundo no comando da gangue, mas o primeiro em termos de astuta perversidade. Fala diversas línguas, cataloga a natureza como um cientista, com habilidades e perícias múltiplas, além de não possuir nenhum pelo em seus dois metros de altura. Não esconde seu objetivo de ter controle sobre tudo o que possa existir. As próprias pessoas em volta começam a duvidar de sua humanidade ou mortalidade. É um das figuras mefistofélicas mais geniais já imaginadas — críticos apontaram que é um bom candidato ao vilão mais assustador da história da literatura norte-americana.
O “rapaz” é a oposição que vai se formando a essa concentração de inteligente malevolência. Essa dualidade ajuda a acentuar o caráter mitológico da narrativa, mas é um bem que não tem a menor chance contra o mal. O Juiz é como um rei de toda a abominação, está em seu elemento natural ou mundo. Mas é um horror longe da irracionalidade. O próprio Holden não perde a chance de catequizar com sua visão de mundo:
"O homem que acredita que os segredos do mundo permanecem ocultos para sempre vive em mistério e medo. A superstição o derruba. A chuva vai corroer os atos que ele realizou na vida. Mas o homem que se propõe a encontrar o fio condutor da tapeçaria, só com a decisão, em si, assumirá o comando do mundo, e só por meio desse comando ele descobrirá a maneira de ditar os termos do seu próprio destino."
Soa familiar tal hubris?
"Meridiano de Sangue" é um livro que machuca a memória e, como toda obra de arte, convida múltiplas interpretações. Especialmente no final, que pode sugerir tanto uma multiplicação do mal quanto sua reversão. Pessoalmente, discordo apaixonadamente da visão de mundo retratada e repetida ao ponto da náusea. Mas não é que "Meridiano" faça apologia niilista. Há controvérsias sobre isso. A impressão que ficou em mim foi quase como o contrário disso, pelo contraste. De tanto horror, aquilo que se horroriza, os valores opostos, começam a ser indiretamente realçados.
Tinha lido há uns 25 anos, na época da faculdade, e só lembro de ficar impressionado com a violência e as sugestões de que a existência é fruto de algo maligno. Nessa leitura agora, foi um dos poucos livros em que senti vontade de reler assim que acabou, mesmo sendo como um pesadelo sanguinolento!