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"Não me Abandone Jamais" ("Never Let Me Go", 2005, 344 pgs) é uma premiada ficção distópica do escritor nipo-inglês Kazuo Ishiguro, que ganhou o Nobel de literatura em 2017.
Não é à toa que costuma aparecer nas listas de melhores romances do século 21. Conta a estória de duas moças e um rapaz que cresceram em um internato inglês inesquecível, evocando tanto memórias idílicas quanto mistérios sombrios. Os três são ligados por uma profunda amizade e um conflituoso triângulo amoroso, enquanto vão descobrindo os segredos da escola e quem realmente são.
As personagens são pessoas de uma classe social com fins ultra-específicos, e a rememoração em primeira pessoa da protagonista Kathy penetra seus conflitos e anseios únicos, mas também humanamente universais.
É difícil falar sobre o que é sem espoliar e, caso queira ler, recomendo passar longe da sinopse da versão brasileira. Há um mistério na primeira parte do romance que o resumo da editora espolia sem muita noção.
Romance é um dos elementos principais, mas o título na verdade não é a súplica amorosa que parece. Trata-se da balada de mesmo nome — “Never Let Me Go”, lançada em 1956 com a voz de Judy Bridgewater — que tem um papel-chave na estória.
No fim, é um poderoso drama sobre relações e o que gera humanidade mesmo em meio a uma desumanidade sistêmica extrema. Bastante íntimo e pessoal, mas totalmente interligado a um contexto tecno-sociopolítico distópico. É daquelas estórias que enriquecem destroçando o coração.
Foi o livro de abril do clube de leitura Contrapa ( forum.contracapa.club/d/28-nao-me-abandone-jamais ). O próximo é o grandioso "A Trama das Árvores", de Richard Powers.
SPOILER E O FILME
O que não quis escrever acima para não estragar a experiência de quem for ler é que as personagens são clones, criadas apenas para terem seus órgãos colhidos. Caso quem lê não souber isso de antemão e for compreendendo gradualmente com o desenrolar da narrativa, é bastante impactante.
O modo como essa descoberta ocorre, de certo modo, é parecido com os estágios de compreensão das próprias personagens. Elas só percebem totalmente do que são vítimas quando já estão morrendo e não há mais nada a fazer. Mas não é que isso tenha sido ocultado. Na verdade, é bastante mencionado desde a infância delas, de modo incompleto, sem ênfase ou revelações com consequências existenciais. As crianças desde cedo são ensinadas que não são como as outras pessoas e que existem apenas para “fazer doações de órgãos”.
Há uma boa adaptação cinematográfica de Mark Romanek, de 2010. Recomendavam-me esse filme, mas eu resistia porque, pelo trailer, parecia só um melodrama.
Assisti por causa do roteiro do grande Alex Garland há uns anos e me impressionou, levando-me ao livro. Como a adaptação tenta contar a mesma estória com fidelidade, é um caso em que dá para comparar as duas obras lado-a-lado.
O filme sai perdendo bastante. Em boa parte, porque não tem como comparar algo que exige, no total, mais de 10 horas de leitura, literalmente entrando na cabeça da protagonista, com um resumo audiovisual de 1h40.
Mesmo assim, ainda recomendo o filme. É um dos melhores do tipo “estória de amor distópica”. Mas, por exemplo, pelo que lembro, ele não mostra o significado do título, eliminando uma das cenas-chave do livro, entre vários outros elementos — como a carência afetiva intensa das crianças que nunca tiveram mãe nem pai e, por isso, competem até pelo afeto das professoras.
Ao terminar o livro, fiquei com a mesmíssima sensação de algo arrasador e inquietante do final do filme. Não sei identificar exatamente o porquê, mas, entre outros motivos, parece estar ligado à juventude das pessoas clonadas.
Além de não ser possível um final melhor — não há escapatória —, elas morrem todas cedo demais, antes dos 30 anos. Imagino que não há tempo para nenhuma satisfação ou compreensão maior da vida. Morrem apenas perplexas, em maior ou menor grau, diante da brutalidade trágica e disfarçada de suas existências sem sentido, como coisas cultivadas para gerar órgãos.
Há muitos paralelos com a realidade. Por exemplo, o fato de que, para elas, a revolta não é algo nem ao menos concebível. Foram ensinadas desde muito cedo a aceitarem sua condição. Alguém poderia imaginar que, na verdade, não é uma vida tão ruim. Há amizades, amor, trabalho, sexo, arte, passatempos diversos… Mas o fato de que estão sendo desumanamente exploradas, literalmente assassinadas, permanece gritante.
Achei fascinante como as crianças terminam espontaneamente criando seus próprios mitos. Elas recebem uma educação completamente laica, sem nenhuma religião. Então, criam estórias e lendas que terminam virando uma mitologia própria.
Por exemplo, no internato, há uma sala para onde são levados todos os objetos perdidos. Elas começam a imaginar que há algo similar num nível federal, em uma cidade abandonada (Norfolk) que centralizaria tudo o que é perdido na Inglaterra. Sabem que é uma fantasia infantil, como muitas outras que alimentaram e, num nível subliminar, continuaram entretendo. Bem no final, Kathy vê uma pilha de lixo sob uma árvore em um campo com o sol se pondo e fantasia que é a grande montanha de achados e perdidos de Norfolk, onde poderia encontrar as coisas que perdeu na vida, incluindo até o amor.
Pouco antes, o esclarecedor diálogo com Madame sugere boas intenções por parte da administração do internato de Hailsham, à primeira vista. O lugar era parte de um projeto de tratamento mais humanizado das pessoas doadoras que, em outros locais e épocas, eram tratadas como animais. Apesar de não conseguirem nenhum tempo de vida a mais para si, Kathy e Tommy foram muito privilegiados por terem crescido lá. Mas o mal-estar permanece.
Parece mais uma nobre fachada. Como servir um banquete de última refeição — a pena de morte não muda em nada. Talvez tenha sido isso que tornou o final tão inquietante. Lembra os confortos paliativos da nossa modernidade que, no fundo, são como tornar aconchegante a cela no corredor da morte.
Outro elemento revelador, pra mim, foi o formato da narrativa. Apesar de isso não ser enfatizado, Kathy, na verdade, foi quem escreveu o livro. Isso parece claro no início, quando ela se dirige explicitamente a quem estiver lendo:
"Conheço cuidadores que trabalham tão bem quanto eu e que não recebem nem a metade dos créditos. Se você for um deles, entendo o motivo de possíveis ressentimentos (…)."
Ela se dirige a uma pessoa leitora que não conhece, do mesmo modo quando um livro é escrito (sua grande familiaridade com a literatura aparece em outros momentos). Isso acaba sendo relevante pois o livro é como se fosse a “história íntima” daquelas pessoas condenadas. No fim, esse foi o ato de revolta que estava ao seu alcance, para que outras pessoas pudessem perceber a insanidade brutal do sistema que dependem para prolongarem suas vidas. E quem lê o livro, no final, somos nós.