sol2070 reviewed A Década da Revolução Perdida by Vincent Bevins
Prodigiosa grande reportagem
4 stars
A Década da Revolução Perdida (If We Burn, 2023, 344 pgs), de Vincent Bevins, narra, contextualiza e analisa a onda de protestos mundiais entre 2010 e 2020, com destaque para o Brasil em 2013.
O título faz referência ao fato de que a maioria desses levantes terminou mal, não levando a mudanças duradouras, ou até piorando o que já era ruim.
Vincent foi correspondente do jornal Los Angeles Times no Brasil, entre 2011 e 2016, além de ter coberto alguns desses protestos em massa pelo mundo. Para o livro-reportagem, também foram entrevistadas diversas das pessoas que ajudaram a organizar os movimentos e especialistas. Mas a experiência pessoal do jornalista ainda é o elemento cativante.
Dez levantes são analisados mais detalhadamente: na Tunísia, Egito, Bahrein, Iêmen (a chamada Primavera Árabe), Turquia, Brasil, Ucrânia, Hong Kong, Coréia do Sul e Chile. Características comuns desses movimentos massivos foram a horizontalidade (ausência ou redução de hierarquias), espontaneidade e organização via redes sociais.
O que aconteceu no Brasil ilustra bem como a coisa terminou mal. Protestos do Movimento Passe Livre (MPL), de orientação anarquista, exigiam a redução do preço do transporte público. Cresceram muito em 2013, e o governo acabou atendendo a demanda. A intensa cobertura da mídia fez o número de participantes explodir, entretanto, sem muito alinhamento com a causa inicial.
Esse clamor público foi meticulosamente sequestrado por movimentos de direita como o MBL (sigla que intencionalmente imitava MPL) e Vem Pra Rua, que se disfarçavam de jovens, apartidários, descolados e descentralizados, mas que tinham financiamento de organizações conservadoras e neoliberais dos EUA. Conseguiram instrumentalizar perfeitamente aversões populares como o ódio a políticos corruptos ou até a qualquer entidade política. Esses protestos foram decisivos para o impeachment de Dilma Roussef, a eleição de Bolsonaro e a ascensão da extrema-direita.
A perspectiva de alguém de fora sobre o Brasil traz um respiro refrescante em meio à cobertura viciada da mídia nacional, do tipo “como explicar para um alienígena recém-chegado o que está acontecendo”.
Nos outros países, houve situações parecidas, em que estruturas impopulares foram derrubadas, mas o vácuo deixado foi sequestrado por grupos políticos sem nenhum compromisso com as mudanças, ou na verdade, comprometidos em piorar a situação da maior parte da população.
Só não gostei dos dois capítulos finais, em que o autor expõe suas conclusões e a de especialistas. A qualidade descentralizada e horizontal dos movimentos teria sido a principal fraqueza, responsável por no fim não apenas impedir o êxito dos movimentos, mas até trazer pioras sociopolíticas.
Apesar de não declarar explicitamente, o jornalista não esconde sua simpatia por essa visão marxista-leninista, em que seria essencial uma “vanguarda” centralizadora de líderes e representantes para realmente efetivar uma revolução.
Claro que houve falhas e erros nesses movimentos descentralizados — muitas das jovens ativistas estavam fazendo isso pela primeira vez. Mas a exposição do autor não convence de que o oposto (a centralização e partidarização), sim, funcionaria. Basta olhar as revoluções marxistas históricas para constatar onde terminaram: os meios da revolução como hierarquia e centralização contaminaram os fins, criando autoritarismo e abuso de poder.
Na conclusão, o levante popular no Chile entre 2019 e 2020 chega a ser classificado como uma exceção vitoriosa, já que a coisa desembocou na política tradicional assumindo as rédeas — só com tal aliança seria possível mudanças positivas estáveis.
Entretanto, o rascunho da nova Constituição foi rejeitado e os movimentos sociais perderam fôlego. Muita gente se sentiu traída pelos líderes dos protestos que enveredaram pela política partidária e seus conluios, como o atual presidente Gabriel Boric. Do ponto de vista horizontal e descentralizado, ceder à estrutura política dominante é que foi o erro.
No final, é até sugerido que, caso um movimento não esteja muito bem estruturado (ou seja, hierarquizado com seus líderes e “vanguardas”), o melhor é nem tentar nenhuma rebelião ou protesto, sob o risco de as coisas piorarem. Essa pérola se destaca porque é o que dizia Edward Burke, em 1790, o pai do conservadorismo: qualquer tentativa de mudança é perigosa e prejudicial.
Contudo, esse final não compromete. No conjunto, é uma prodigiosa grande-reportagem.
Li a versão em inglês.