Marte reviewed Bash Back! by Fray Baroque
"Lenin e Marx nunca transaram dos jeitos que a gente transa"
5 stars
Tinha lido esse livro cerca de um ano atrás na versão de e-book -- que inclusive está integralmente disponível no site da crocodilo edições, o que é bem justo com a proposta anárquica do livro, que é uma coletânea de textos. O contexto de escrita desses textos é justamente os levantes que se deram com a Bash Back!, uma "proposta de propagação de práticas libertárias e ações diretas, pela expansão de uma rede anti-hierárquica de levantes descentralizados, compostos por táticas múltiplas de antiopressão e antiassimilação" (como escreve Flávia Lucchesi no prefácio brasileiro), no contexto estadunidense ali pelo final dos anos 2000/começo dos anos 2010.
Quando li pela primeira vez, senti uma empolgação visceral, um impulso de querer procurar por uma organização, mas também querer iniciar uma insurreição. Esse sentimento se mantém nessa segunda leitura, agora em versão física, motivo pelo qual estou aumentando minha avaliação de 4/5 para 5/5.
As …
Tinha lido esse livro cerca de um ano atrás na versão de e-book -- que inclusive está integralmente disponível no site da crocodilo edições, o que é bem justo com a proposta anárquica do livro, que é uma coletânea de textos. O contexto de escrita desses textos é justamente os levantes que se deram com a Bash Back!, uma "proposta de propagação de práticas libertárias e ações diretas, pela expansão de uma rede anti-hierárquica de levantes descentralizados, compostos por táticas múltiplas de antiopressão e antiassimilação" (como escreve Flávia Lucchesi no prefácio brasileiro), no contexto estadunidense ali pelo final dos anos 2000/começo dos anos 2010.
Quando li pela primeira vez, senti uma empolgação visceral, um impulso de querer procurar por uma organização, mas também querer iniciar uma insurreição. Esse sentimento se mantém nessa segunda leitura, agora em versão física, motivo pelo qual estou aumentando minha avaliação de 4/5 para 5/5.
As questões expostas em BB! Ultraviolência queer são demasiado complexas para serem tratadas integralmente em uma resenha, de forma que só posso incentivar a leitura do livro. Mas dá para começar a levantar essas questões aqui, o que farei.
Uma das temáticas centrais do livro, e da própria Bash Back! em si, é a divergência entre o que entendemos por manadas queer e movimento LGBTQ+. As manadas clamam o queer enquanto uma existência libertária, anticapitalista, antiestatal, anti-heteronormativa, antiassimilacionista. Em outras palavras, não é uma junção de pessoas com identidades convergentes, expressas de forma pasteurizada em uma "sopa de letrinhas", e sim uma prática e uma existência (a)política. Até porque há mais em comum entre uma travesti moradora de rua e um morador de rua "heterossexual" do que entre a mesma travesti e um Eduardo Leite da vida. Os textos escolhidos para o livro são todos anônimos, escrevidos de preferência enquanto colocações coletivas, o que reforça esse caráter libertário.
Lucchesi, no prefácio, traz algumas experiências que podem ser comparadas com a Bash Back! estadunidense. Uma delas representa, na minha opinião, perfeitamente a imagem que o livro está querendo trazer. No Rio de Janeiro, em 2013, plena Jornada Mundial da Juventude, um evento da Igreja Católica em que o Papa estava presente, duas pessoas participantes da Marcha das Vadias fizeram uma performance considerada "violenta" por grupos presentes, e também pela sociedade cristã em geral. Eles quebraram diversas imagens de santos católicos e, nus, inseriram um crucifixo no ânus do outro. Com certeza, as imagens chocam quando estamos acostumados a ver isso enquanto violência e não o constante vilipêndio das vidas queer. O casal acabou sendo denunciado pelo Ministério Público, sendo criminalizado via judicial.
Bash! Back não é sobre revidar a partir da posição de vítima, uma posição que é reivindicada por diversos grupos identitários. É sobre revidar agressões, mas também puxar as brigas, agredir, cometer crimes para sobrevivência. "Eu-Não-Revido-No-Soco-Eu-Atiro-Primeiro". Nada disso é levado de forma leviana no livro, mas sim explicitando o poder inflamatório de uma insurreição e também a necessidade de criação de manadas (de pessoas, especialmente queer) que se protegem de qualquer forma possível. Se isso significa chocar a sociedade moralmente correta, que seja. Por isso, destaco a frase: "Lenin e Marx nunca transaram dos jeitos que a gente transa". Abraçar o prazer, o puro prazer físico e sensual, também é uma colocação (a)política em uma sociedade que se pune por isso. O sexo, o foder, o chupar, tudo isso faz parte da vida reivindicada por esses grupos.
Algumas pessoas podem estranhar os constantes embates presentes no livro entre queer e identitarismo (no sentido de abraçar identidades fechadas em si como colocações políticas), esse último cristalizado no movimento LGBTQ+. Uma parcela queer extremamente vocal e cansada tem denunciado continuamente o assimilacionismo promovido pelo movimento LGBTQ+, que transforma a identidade em mais um produto capitalista. Para abordar essas questões, os textos dialogam direta e indiretamente com autores como Foucault (biopolítica), Deleuze (devir, beleza, corpo sem órgãos...), Butler (teoria queer negativa versus feminismo positivo), Nietzche (niilismo). As manadas veem na antipolítica uma possibilidade de destruição verdadeira do capitalismo, não uma simples reforma.
Um exemplo desse assimilacionismo é o ataque à memória de insurreições como Stonewall, que são vistas como exemplos radicais a serem seguidos, mas quando grupos e/ou manadas partem para a insurreição, são boicotados pelo movimento LGBTQ+ reacionário ou por grupos anarquistas heteronormativos, que são ambos duramente criticados no livro.
Claro que um livro escrito majoritariamente por queers e figuras transfemininas em geral não pode deixar falar do laço social com a prostituição. A teoria puta aparece no livro como um lembrete sobre como o lumpenproletariado, no conceito marxista, resiste e está armado contra o reacionarismo, sendo crucial para um processo insurrecional revolucionário, ao contrário do envisionado no Manifesto Comunista (Marx, Engels).
Está presente também uma crítica contumaz à Academia com letra maiúscula. De forma astuta, as manadas criticam a intromissão de "pessoas queer radicais provenientes de faculdades liberal arts", responsabilizando-as como parte do motivo pela derrocada das Bash Back! com seu pacifismo irritante e descontextualizado da teoria puta e traveca. Há uma grande apresentação do conceito de transfeminismo insurrecional em oposição a esse agrupamento queer cheio de teoria e pouca prática: "a greve de gênero é uma greve humana", "leia menos, lute mais", "morte à academia". Não se trata de recusar a teoria queer ou qualquer outro conceito da academia, mas de extirpá-lo desse espaço exclusivo e trazer para a insurreição.
Em resumo, Bash Back! é um livro ácido, direto e virulento. E não poderia ser diferente. Trata-se de buscar o que é nosso por direito, choque a quem chocar. Não se trata de glorificar a violência e a putaria, mas de desestigmatizá-las enquanto poderosas ferramentas de libertação queer.