Se eu tivesse um real para cada vez que Paul B. Preciado fala do devir deleuziano, eu estaria com dinheiro para comprar um açaí.
Piadas à parte, eu comecei esse livro bastante empolgada. Os primeiros capítulos são chocantes, no bom sentido. Preciado detona a família margarina e a supremacia branca-ocidental mais de uma vez. Conforme o livro foi passando, pela quantidade de temas a que somos expostos, aprendemos um pouco mais das subjetividades (e ele adora essa palavra, tá) do autor. Alguns, me deram um pouco de sono. Explico.
Peguei esse livro, que foi um presente meu para meu marido, para ler porque estava interessada nessa tal de travessia do sistema sexo-gênero. Questões pessoais à parte, fui surpreendida, porque não necessariamente os ensaios aqui aglomerados fazem referência a isso - mas o assunto não deixa de aparecer durante o livro todo. O livro é composto por 72 ensaios escritos de 2010 a 2018, alguns melhores do que outros.
Os seguintes pontos são interessantes e relativamente bem desenvolvidos, considerado o limite de espaço de um ensaio:
- Crítica à esquerda conservadora, principalmente no contexto europeu (em especial o Francês);
- Defesa da criança (em especial a queer, famosa criança viada) enquanto um ser capaz de ter suas próprias opiniões e defendê-las, não um ser castrado-puro-angelical, construção que está por trás de muitas pautas conservadoras;
- Heterossexualismo de Estado: como as tecnologias reprodutivas são controladas de perto pelos Estados nacionais para manter suas narrativas nacionalistas fantasiosas;
- Defesa do direito ao trabalho sexual;
- Ficções sexuais e qual a narrativa correta (se é que existe) que retrata o sexo lésbico (entre outros);
- Crítica ferrenha contra a dicotomia sexual fabricada pelo Ocidente;
- Dissertação sobre a alteridade na academia;
- Normatividade nas comunidades homossexuais;
- Experiências de transição na dicotomia sexo-gênero: abandonando a identidade lésbica e assumindo uma identidade de homem trans.
Há outros pontos legais nesse livro, que rendem bastante discussão produtiva e são escritos de forma invejável por Preciado - ele escreve BEM.
Entretanto, ele não está isento de cometer erros colonialistas, por mais que tente várias vezes se afastar da sua realidade europeia ocidental. Um exemplo emblemático é a escolha do nome Beatriz Marcos como aceno ao movimento zapatista - algo que foi criticado amplamente lá por 2015, e acabou voltando atrás e seguindo com o nome Paul. Mas esse exemplo nem é o mais emblemático. Ao insistir que sua identidade trans está intimamente ligada ao nomadismo que adota de 2013 para frente, aproximando-a constantemente de párias migrantes de lugares como o Oriente Médio ou as Áfricas, principalmente a Mediterrânea, Paul demonstra estar distante em experiência dessas pessoas. Para mim, um exemplo claro é o capítulo "Casa Vazia", em que uma enorme dissertação sobre como morar em uma casa vazia em Atenas é uma metáfora para sua transição de gênero aparece. Não consigo empatizar muito com quem escolhe dormir no chão e faz um texto enorme floreando o passar perrengue. Outros momentos do livro, eu tenho a impressão de estar vendo uma pessoa branca lamentando as intempéries da vida em cafés da Europa ocidental usando palavras difíceis de propósito. Preguiça demais dessas passagens.
Mas acho que isso tudo faz parte da experiência de mundo de Preciado e, apesar de eu receber com certa preguiça, não acho que valeria a pena esconder suas experiências. No mais, estou muito interessada em ler mais do autor, principalmente no que diz respeito ao que ele chama de indústria farmacopornográfica, que é tratada em outro livro, mas com pouco detalhe nesse.
Em resumo: empolguei-me muito com o livro em várias partes, rolei os olhos em outras, mas no geral a impressão que ficou foi positiva e vou recomendar alguns ensaios desse livro para outras pessoas.