Que histórias uma negra brasileira, em pleno séc. XIX, desejaria contar a respeito da escravidão? Parte da resposta encontra-se na obra da maranhense Maria Firmina dos Reis (1825-1917), prosadora, poeta, compositora e professora, ninguém menos que a primeira escritora brasileira. Pois este livro, produzido em 1859 pela Tipografia do Progresso, de São Luís, foi o primeiro no Brasil a ser publicado por uma mulher, e também o primeiro a ter por autora uma pessoa afro-brasileira, e o nosso primeiro romance abolicionista. É o suficiente para afirmamos a sua importância perante as letras nacionais, e para fazermos questão de que conste do nosso acervo brasileiro.
O paraibano Horácio de Almeida (1896-1983), escritor, informa da curiosa trajetória deste livro, que ficou esquecido durante 100 anos aproximadamente. Ele adquiriu, no Rio de Janeiro, o que julgou ser o único exemplar de Úrsula impresso pela Tipografia do Progresso, ou o único exemplar disponível, entre muitas brochuras antigas que comprara para sua biblioteca. Ao abri-lo, compreendeu estar diante de uma verdadeira raridade literária, umas dessas preciosidades que têm interesse histórico.
Firmina dos Reis esteve pouco conhecida do público em sua condição de primeira romancista, e da maioria dos escritores e jornalistas do Maranhão em sua época segundo a conclusão de Almeida, certamente por ser mulher, e em grande medida por não ter assinado o romance: pôs-lhe o pseudônimo Uma Maranhense, e coube a Almeida determinar a real identidade da autora, mediante consulta a literatos e dicionaristas com quem tinha contato. A autora foi conhecida por outras obras, inclusive prestigiada, mas não por este livro. Porém existe alguma controvérsia quanto a este ponto. Horácio de Almeida havia procurado referências jornalísticas a Úrsula e sua autora, sem encontrá-las, mas sabemos que existe pelo menos uma, em um número do jornal A Imprensa, de 19 de outubro de 1961.
A impressão fac-similada da publicação de 1859, a partir da qual damos a público a presente edição, com a devida atualização ortográfica, foi preparada por Almeida, sob encomenda do então governador do Maranhão, Nunes Freire, em celebração dos 150 anos de Firmina dos Reis. Destarte, o grande maranhense Nascimento Morais Filho (1922-2009) dedicou-se a procurar e reunir o que pudesse ser encontrado da obra de Firmina dos Reis, a serviço da Academia de Letras do seu estado embora não se interessasse por Maria Firmina somente como um acadêmico, mas como brasileiro, entusiasta da realização brasileira. É de Morais Filho a primeira biografia da autora, Maria Firmina, fragmentos de uma vida, pela Imprensa do Governo do Maranhão, de 1975.
Maria Firmina dos Reis foi uma mulher negra, a quem chamariam "parda" na atualidade, ou "mulata", embora muitos negros nossos contemporâneos rejeitem esses termos, por considerá-los falsificantes, ou pejorativos. Todos concordarão que era uma afro-brasileira. Diferentemente do que afirma no prólogo de Úrsula, é bastante notório que possuía amplo cabedal de literatura e cultura geral, muito afeito ao referencial europeu em termos humanísticos, como era normal naquele tempo embora os escritores quisessem criar uma verdadeira literatura brasileira, e tivessem disto uma consciência bastante aguçada. Tinha formação clássica e era uma leitora do seu tempo, com os seus costumes e tendências. Prima do escritor e gramático Francisco Sotero dos Reis (1800-1871), por quem nutria a maior admiração, e que exerceu uma grande influência sobre ela. Não era uma mulher de posses, nem realmente pobre. Autodidata, prestou concurso em 1847 para a Instrução Primária, e foi aprovada. Lecionou língua portuguesa (primeiras letras) entre 1847 e 1881, sempre no Maranhão.
Em 1881, fundou o que seria a primeira escola gratuita e mista do Brasil, no povoado de Maçaricó, na cidade de Guimarães, onde meninas e meninos partilharam as mesmas salas e materiais, e onde os filhos dos senhores de engelho e dos paupérrimos lavradores estiveram juntos ocupando as mesmas carteiras, como iguais. Maria Firmina era nesse momento uma figura popular em Guimarães, que discursava, em sua modesta varanda, para o ajuntamento de lavradores e demais pessoas do povo que acorria sempre à sua porta, pelo prazer de ouvi-la. Assim, se o baiano Anísio Teixeira é o pai da escola pública brasileira, Firmina é a mãe, e como tal deve ser homenageada.
Maria Firmina publicou outras obras literárias além de Úrsula, em jornais, já a partir de 1860, assinando os seus poemas com as iniciais M. F. R. Em 1861, o poeta Gentil Homem de Almeida Braga (1835-1876) convida-a a participar da antologia Parnaso maranhense, e entre 1861 e 1865 publica o conto Gupeva, de temática indígena, com reimpressões em alguns jornais. O seu livro de poemas Cantos à beira-mar foi publicado em 1871, pela Tipografia do País. Em 1887, novamente para circular na imprensa, publicou o conto A escrava, obra literária com o objetivo da agitação e da propaganda para as campanhas abolicionistas que se seguiram até 1888. Também compôs letras para diversas valsas, e para o Hino da libertação dos escravos, de que também compôs a melodia.
Úrsula, obra do romantismo brasileiro, sem aquele nacionalismo idílico, um tanto infantil que os românticos cultivavam, é um livro marcadamente cristão. Porque a autora tinha um lado místico até bem pronunciado, era cristã, e porque sabia o que estava fazendo: havia a necessidade de apontar a absurda contradição de toda uma sociedade que se considera seguidora do Cristo, e permite a escravidão. Os cristãos tinham de ser chamados à consciência, e o foram, pela obra pouco lida de Firmina e por outras, se considerarmos a grande expressão popular que o movimento abolicionista no Brasil teve em dado momento — o que muita gente na atualidade ignora. O escravo Túlio e a escrava Susana falam em primeira pessoa para atingir a consciência cristã que se pretende a consciência brasileira, e assim também a mulher comum, nas pessoas da menina Úrsula e de sua mãe Luíza, que não são escravas, mas brancas destituídas de posses, e que estão por este modo à mercê dos abusos e crimes do senhor, que se compraz na perdição e no desmando, o senhor de escravos que é também o senhor das terras, e portanto o senhor da lei. O comendador Fernando P., desgraça em forma humana, aparece como a personificação, genérica e previsível conforme aquilo que comumente encontramos no romantismo, não somente da maldade, mas da loucura, de maneira que a loucura das suas abominações cresça a ponto de desmoronar sobre si mesma.
E há o jovem Tancredo, um branco rico, "bacharel cheio de bacharelices que morto não faria falta", no engraçado comentário de Horácio de Almeida, o amado de Úrsula, o mocinho, que vive com o escravo Túlio a grande experiência do encontro entre pessoas, quando o negro salva-lhe a vida após um acidente de montaria. Os dois se olham, falam-se e se tocam, como dois seres humanos que se comunicam de verdade, que se comunicam com aquilo que são, chegando ao extremo de se compreenderem! Talvez, o encontro entre o rico Tancredo e o escravo Túlio tenha sido semelhante àquele que se fez entre os filhos dos senhores de engelho e os filhos dos lavradores pobres, na sala de aula que Maria Firmina construiu, na vida real, no interior do Maranhão.