Miguel Medeiros quoted Brasil by Lilia Moritz Schwarcz
Essa nova gente capturou a curiosidade de Caminha: “A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem fazem mais caso de cobrir nem mostrar suas vergonhas, e estão acerca disso com tanta inocência como têm em mostrar o rosto”. O escrivão se espanta com suas “peles vermelhas e cabelos escorregadios”, e ademais com o fato de serem bonitos de corpo e alma. Começava com essa percepção certa ladainha de vida longa, que construiu a imagem de um “bom selvagem” brasileiro, muito retomada nos relatos franceses e, sobretudo, por Rousseau no século XVIII. Mas o que para ele seria apenas um modelo bom para criticar a Europa e a civilização — e nada tinha a ver com observação direta — aqui ganha um jeito de realidade. Esses eram bons gentios que podiam ser catequizados e assumir a boa-fé. Tanto que no domingo de Pascoela se levantou um altar de madeira para que uma missa fosse oficiada pelos padres e sacerdotes. Lá estava o capitão e a bandeira de Cristo, vinculando os feitos dos homens às façanhas divinas: “E pregou uma solene e proveitosa pregação, da história evangélica; e no fim tratou da nossa vinda, e do achamento desta terra, referindo-se à Cruz”.
Por fim, na sexta-feira, primeiro dia de maio, procurou-se rio acima o melhor lugar para arvorar uma cruz: que ela fosse vista de todos os lados. Feita a cruz e a divisa da monarquia, o padre frei Henrique rezou a missa que foi seguida, ainda segundo Caminha, por “cinquenta ou sessenta deles assentados todos de joelho”, junto com os demais membros da esquadra. Na hora do Evangelho, quando todos se ergueram com as mãos levantadas, o escrivão anotou bem o mesmo gesto dos nativos. Chegaram até a comungar, espantou-se: “Um deles, homem de cinquenta ou 55 anos, ficou ali com aqueles que ficaram […] E andando assim entre eles, falando-lhes, acenou com o dedo para o altar, e depois mostrou o dedo para o céu, como se lhes dissesse alguma coisa de bem; e nós assim o tomamos!”.
Evidentemente deslumbrado, o relato de Caminha inaugurava, também, outro mito recorrente. O da natureza pacífica, de uma conquista sem violência, uma comunhão que unificou a todos, num mesmo coração e religião. Estranho processo que definiria o Brasil como um país da ausência de conflito, como se os trópicos — por algum milagre ou dádiva — tivessem o poder de aliviar tensões e inibir guerras. Na Europa as lutas dividiam e sangravam nações; já no Novo Mundo, se guerras existiam, elas eram, segundo os relatos europeus, só internas. O encontro havia de ser sem igual e entre iguais, por mais que o tempo mostrasse o oposto: genocídio de um lado, conquista de outro.
— Brasil by Lilia Moritz Schwarcz, Heloisa Murgel Starling (Page 29 - 30)