Pode-se definir a Lógica do Pórtico como um vigoroso protesto contra o universalismo e o conceptualismo de Aristóteles. De acordo com os estoicos, a Lógica da atribuição do estagirita segundo a qual Sé P ("Sócrates é mortal") carece de sentido, pois lhes parece possível enunciar apenas acontecimentos, tais como "Sócrates passeia". Dessa maneira, os estoicos se afastam da Lógica de predicados de Aristóteles, que pretende subsumir o individuo na espécie, a espécie no gênero, o particular no universal, o acidental no essencial e assim sucessivamente. À célebre afirmação de Aristóteles, segundo a qual somente pode haver ciência do universal, o Pórtico opõe a ciência do particular, que é exatamente a Lógica, disciplina que não pretende encaixar conceitos gerais, mas descrever as implicações dos acontecimentos singulares segundo a verdade. Para a Stoá, a Lógica apresenta natureza proposicional, não servindo, portanto, para a predicação de um sujeito, mas unicamente para descrever fatos e situações concretas relativas. Nela os atributos dos seres são expressos logicamente não por epítetos que indicam as suas propriedades, mas por verbos de ação. Essa foi a elegante solução encontrada pelo Pórtico para resolver o problema lógico da atribuição, que inquietou Platão a ponto de levá-lo a conceber a teoria das Ideias. Antes, Parmenides já havia notado o ilogismo que as proposições do tipo X é Y acarretam, motivo pelo qual concluiu que o Ser é o Ser, nada mais podendo ser dito.
Ao sustentar que Sé P, ou seja, ao predicar alguma quali dade a dado sujeito por exemplo: "Sócrates é mortalog aristotélicos acabavam identificando coisas desiguais, uma vez que, ao fim e ao cabo. "Sócrates" e "mortal" são entes diver sos Independente da réplica dos peripatéticos, o paradoxo fez surgir várias posições. Os megáricos sustentavam que a única proposição logicamente perfeita era a que estabelecia o princi pio (theoremata) da identidade A é A, por exemplo: "Socrates é Sócrates" Qualquer outra proposição seria inaceitável, o que levou o ceticismo a afirmar a inutilidade da Lógica, que so mente produziria tautologias. Como dito acima, os estoicos propuseram outra solução para o problema da atribuição, evi-tando-o de maneira bastante criativa. Ao se negar a construir uma Lógica da inerencia como a de Aristóteles, o pensamento estoico deixou de utilizar proposições do tipo Sé P, que assi nalam propriedades, preferindo construir suas proposições por meio de verbos que designam ações e acontecimentos. Com isso, mantiveram a unidade da doutrina, que na seara fisica afirma estar o universo em constante movimento graças à ação do ló gos. Em vez de afirmarem que "Sócrates é mortal", mesclando, assim, indevidamente sujeito e predicado, os estoicos preferem dizer que "Socrates está sendo mortal". Ora, a construção ver bal "está sendo mortal" é um lekton, um "dizível” que não se confunde com a palavra nem com o objeto real que indica. Se-gundo Emile Bréhier, citado por Jean Brun,
o atributo, considerado como todo o verbo, não aparece mais a exprimir um conceito (objecto ou classe de objectos), mas somente como um facto ou um acontecimento. Logo, a proposição não exige mais a penetração reciproca dos dois objectos, impenetráveis por natureza; não faz senão exprimir certo aspecto de um objecto, enquanto realiza ou sofre uma acção; [...]. O problema da atribuição é, pois, resolvido roubando aos predicados toda a realidade verdadeira. O predicado não é nem um indivíduo, nem um conceito; é incorpóreo e só existe no simples pensamento [...]. Na sua irrealidade, e devido a ela mesma, o atributo lógico e o atributo das coisas podem, pois, coincidir.
Negando-se a realizar cópulas lógicas mediante o verbo "ser", as proposições resultantes da Lógica estoica expressam não um atributo do sujeito, mas uma ação ou um evento, ou seja, algo que não modifica a estrutura ôntica do Ser. Com isso, a perigosa identificação entre dois seres diversos por natureza ("o sol é amarelo"), própria da Lógica aristotélica, dá lugar à descrição de um modo do sujeito ("o sol amarelece"). O predicado, resumido a um verbo de ação, não penetra no sujeito e não se presta a fundir duas realidades onticamente inconfundíveis ainda que ontologicamente tudo esteja em tudo, como discutido na seção anterior, tratando-se apenas do resultado de uma operação mental 173, Diferentemente do que ocorre na Lógica aristotélica, o sujeito na Lógica da Stod é sempre singular e o predicado expressa algo que lhe ocorre, não as suas qualidades. Assim, o predicado é o que se diz de alguma coisa 174 O estoicismo resolve o problema da atribuição negando toda realidade ao predicado: ele não é uma coisa, um corpo ou um conceito, mas um incorpóreo um lektón que existe apenas no plano do pensar.
Tal construção não é uma simples sutileza verbal. Com ela os estoicos indicam claramente que só reconhecem como lógicas as proposições enunciadoras de fatos 175. A correlação das proposições na sua Lógica não apresenta caráter categórico, orientando-se rumo a uma Lógica das relações temporain Somente a esse custo pôde a Stod manter a estrutura unitária que governa seu sistema. Os conceitos gerais da Lógica aristorelica de inerência seriam inúteis em uma concepção filosófica segundo a qual nenhum homem é igual ao outro e em que o tempo, antes de ser mero transcurso cronológico, abarca a pró-pria racionalidade cósmica do lógos. Assim, o primeiro passo do sábio informado pela Lógica do Pórtico consiste em conhecer as relações temporais entre os antecedentes e os consequentes, de maneira a ajustar sua conduta à máxima da conformidade com a natureza. Na próxima seção será discutido como essas ideias auxiliam na fundamentação da liberdade humana no contexto da teoria estoica do destino.
Ao contrário do que se verifica na seara ética, de feição mais ontológica do que ôntica, no terreno da Lógica os estoicos repudiam as entidades universais, dado que, segundo Crisipo, não existe algo como o homem universalmente considerado, mas apenas certos homens em determinadas circunstâncias Tal posição, marcadamente materialista, deriva da negação estoica da teoria das Ideias de Platão". De acordo com Crisipo, o universalismo contido na proposição "o homem é um animal racional e mortal" não passa de um jogo verbal criado por acadêmicos e peripatéticos para a defesa dos seus argumentos. Na realidade, o universal não existe enquanto entidade corpórea, mas somente como um dos modos do discurso lógico-formal, constituindo, portanto, uma categoria vazia 178. Por isso, o universal não encontra lugar nem no pragmatismo lógico nem no materialismo fisico dos estoicos, embora receba outra coloração na Ética.
A Lógica estoica se apresenta como um tipo radical de nominalismo: negando a existência dos universais no domínio logico, a Stod se limita apenas aos corpos, entidades particulares em relação às quais se pode dizer algo. Como nota Bréhier, 6 nominalismo estoico é menos um postulado da Lógica do que um resultado da Física: os filósofos do Pórtico entendem que apenas o singular e o individual são reais, porque somente neles encontram a causa e o centro vital do Ser179, conforme explicitado na subseção relativa à Física. Diferentemente, ao que me parece é possível refutar a Lógica estoica mediante as teses da própria Física da escola, segundo as quais tudo que existe está intimamente ligado, havendo um único corpo o do uni verso que abarca integralmente o real, de maneira que a interpenetração do sujeito e do predicado não geraria nenhum problema ontológico, sendo, ao contrário, a comprovação lógica da existência da mescla total chamada de realidade. Não obstante essa crítica que julgo debilmente respondível me diante a distinção entre dimensões ônticas e ontológicas -, a Lógica estoica trabalha apenas com particulares e singulares, jamais com universais, que não existem enquanto corpos, mas apenas como exprimíveis (lekta).
Compreendida a natureza da Lógica estoica, deve-se ana-lisar agora a estrutura básica de suas proposições e de seus ar gumentos. Para tanto, ainda será útil o confronto com Aristóteles 180, Pois bem, sabe-se que o silogismo representa a mais conhecida expressão da Lógica aristotélicatst. Mediante o ar-ranjo de termos universais, o estagirita apresenta argumen-tos do tipo:
Todo A é B;
Todo B é C;
Logo, todo A é C.
Com o correto manuseio de quatro termos lógicos básicos -"todo", "alguns", "é" ("são") e "não é” (“não são") -, podem ser construídos outros tipos de silogismos aristotélicos, que, no entanto, sempre se apresentarão como resultados de uma Lógica de predicados ou de termos. Por sua vez, a Lógica estoica corresponde a uma Lógica de proposições que utiliza outros tipos de silogismos183 e de argumentos, tais como:
Se A, então B;
A;
Logo, B.
Ou, como preferem Empírico: os estoicos, de acordo com Sexto Empírico:
Se o primeiro, o segundo;
O primeiro;
Então, o segundo.
Um exemplo:
Se houver sol nesta manhã, nadarei;
Há sol nesta manhã;
Logo, nadarei
Contrariamente à Lógica aristotélica, a estoica não trabalha com termos, mas com proposições chamadas de asseríveis (axiomata). Os asseriveis são enunciados de sentido completo em si mesmos 184. Eles podem ser verdadeiros ou falsos dependendo de quando são utilizados 185. Já os termos da Lógica aristotélica não se relacionam à verdade e sim à validade do argumento, dado que são absolutamente formais. Os estoicos se comprometeram com uma teoria correspondencial da verdade, de modo que as proposições verdadeiras são aquelas que refletem a verdade contida nas coisas 186. Contudo, os estoicos se referem ao estado real das coisas e não ao seu ser ou à sua essência. Além disso, os asseríveis estoicos são atualizáveis, o que traz como consequência o fato de poderem ser verdadeiros ou falsos indefinidamente. Certo asserível pode mudar o seu valor de verdade porque a Lógica do Pórtico opera com base em um conceito temporalizado de verdade. No exemplo supracitado, o asserível somente será verdadeiro nas manhãs ensolaradas. Compreende-se, assim, o motivo pelo qual os asseriveis da Stoa não são sempre verdadeiros ou falsos, uma vez que devem ser atualizados tendo em vista a realidade fenoménica. Tal não ocorre na Lógica aristotélica, que somente admite verdades formais e universais.
Os asseríveis estoicos podem ser simples ("É noite") ou complexos ("Se é noite, está escuro"), entre outras classificações. Os filósofos do Pórtico construíram complexos catálogos de asseríveis que, combinados, formam argumentos como o que apresen-tei acima. Tais argumentos também são chamados de "modos" (trópoi) e representam as estruturas formais válidas do pensamento. Segundo os estoicos, todos os argumentos complexos podem ser reduzidos a cinco indemonstráveis (anapódeiktos) básicos que não necessitam de prova e não admitem refutação 187, sendo que qualquer argumento complexo deve poder ser reconduzido, por simplificação, a um dos cinco indemonstráveis. Os indemonstráveis são formados por um asserível complexo (não simples) na primeira premissa e um asserível simples na segunda, gerando como conclusão outro asserível simples 188, Seus conectivos básicos são diversos dos da lógica aristotélica, tendo sido descritos por Crisipo como "se", "e", "ou" e "não". Argumen-tos que envolvem o "se" são condicionais. Os que lançam mão do "e", conjuncionais. Os com "ou", disjuncionais. Finalmente, os que utilizam o "não” são denominados negativos. A negação é verifuncional, de maneira que, quando a negação "não" é adicionada a um asserível verdadeiro, torna-o falso; quando é adicionada a um asserivel falso, torna-o verdadeiro. Toda negação na Lógica estoica constitui-se como negação de assertive Se o asserivel é "X" (g: "E dia"), sua negação é não X "Não. É dia"). Um asserivel e sua respectiva negação conformam um contraditório (antikeimena)
Eis os cinco argumentos indemonstráveis do Pórtico:
(1) Se A, então B; A; logo, B.
(2) Se A, então B; não B; logo, não A
(3) Não A e B; A: logo, não B.
(4) Ou A ou B; A. logo, não B.
(5) Ou A ou B, não B; logo A.
A descrição e os exemplos de Bobzien são de extrema utilidade para a compreensão dos indemonstráveis, razão pela qual os reproduzo a seguir de modo praticamente literal. De acordo com a autora, o primeiro dos indemonstráveis é um argumento composto de um condicional e seu antecedente como premissas, sendo que a conclusão é o consequente do condicional, como no exemplo:
Se é dia, Está claro.
É dia.
Portanto, Está claro
O segundo indemonstrável é integrado por um condicional e o contraditório de seu consequente nas premissas, gerando como conclusão o contraditório de seu antecedente. Eis um exemplo:
Se é dia, Está claro.
Não: Está claro.
Portanto, não: É dia.
O terceiro indemonstrável tem nas suas premissas uma cor junção negada e um de seus membros apresentando na conclusão o contraditório do outro membro da conjunção, assim:
Não: Tanto Platão está morto quanto Platão está vivo.
Platão está morto.
Portanto, não: Platão está vivo.
O quarto indemonstrável é formado por um asserível disjuntivo e um de seus membros nas premissas, dando lugar a uma conclusão na qual comparece o contraditório do outro membro da disjunção. Assim:
Ou É dia ou É noite.
É dia.
Portanto, não: É noite.
O quinto indemonstrável trabalha com um asserível disjuntivo e o contraditório de um de seus membros nas premissas, estrutura que gera o disjuntivo remanescente como conclusão:
Ou É dia ou É noite,
Não: É día.
Portanto, É noite.