Em casa, o que mais fazia era ler. Tinha vontade de abafar com impressões exteriores tudo o que fervilhava incessantemente. E, quanto a impressões exteriores, só me era possível recorrer à leitura. Naturalmente, ela me ajudava muito: perturbava-me, deliciava-me, torturava. Mas, por vezes, tornava-se terrivelmente enfadonha. Apesar de tudo, tinha vontade de me movimentar, e me afundava de súbito uma escura, subterrânea e repelente... não digo devassidão, mas devassidãozinha. Tinha paixõezinhas agudas, ardentes, em virtude de minha contínua e doentia irritabilidade. Vinham-me impulsos histéricos, com lágrimas e convulsões. Além da leitura, não tinha para onde me voltar, isto é, não havia nada no meu ambiente que eu pudesse respeitar e que me atraísse. Além de tudo, a angústia fervilhava dentro de mim; surgia-me um anseio histérico de contradições, de contrastes, e eu me lançava na libertinagem. Não foi propriamente para me justificar que, ainda há pouco, eu disse tudo isso... Aliás, não! Estou mentindo! Eu quis, precisamente, justificar-me. Faço agora, meus senhores, uma anotaçãozinha para mim mesmo. Não quero mentir. Empenhei a palavra.
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"Este mundo grande cansa-me à exaustão o pequeno corpo.". — Pórcia
Sou um leigo que se entrega à filosofia, literatura, história e ciência. Leitor de Philip K. Dick a Platão, ouvinte de Arctic Monkeys a John Coltrane, jogador de Red Dead Redemption a Deus Ex.
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Torturava-me então mais uma circunstância: o fato de que ninguém se parecesse comigo e eu não fosse parecido com ninguém. “Eu sou sozinho, e eles são todos”, dizia de mim para mim, e ficava pensativo.
Um homem decente e cultivado não pode ser vaidoso sem uma ilimitada exigência em relação a si mesmo e sem se desprezar, em certos momentos, até o ódio.
Naquele tempo, eu tinha apenas vinte e quatro anos. Minha vida era, mesmo então, desordenada e sombria até a selvageria. Não me dava com ninguém, evitava até conversar, e cada vez mais me encolhia em meu canto. No emprego, na repartição, forçava-me a não olhar para ninguém; mas notei muito bem que os meus colegas não só me consideravam um tipo original, como até — tinha esta impressão continuamente — pareciam olhar-me com certa aversão. Vinha-me à mente: por que ninguém, além de mim, sente ser olhado com aversão? Um dos meus colegas tinha um rosto repulsivo ao extremo, todo picado de varíola, com certa expressão de bandido até. Eu, segundo creio, não ousaria sequer olhar para alguém se meu rosto fosse tão indecente. Um outro tinha o uniforme (Os funcionários russos da época eram obrigados ao uso do uniforme. (N. do T.)) a tal ponto usado que perto dele já se sentia mau cheiro. No entanto, nenhum desses senhores ficava confuso, quer por causa do traje, quer do rosto, ou por algum escrúpulo moral. Um e outro não imaginavam sequer serem olhados com asco; e, mesmo que imaginassem, pouco se incomodariam, contanto que os chefes não se lembrassem de os olhar. Atualmente percebo, com toda a nitidez, que eu mesmo, em virtude da minha ilimitada vaidade e, por conseguinte, da exigência em relação a mim mesmo, olhava-me com muita frequência, com enfurecida insatisfação que chegava à repugnância e, por isso, atribuía mentalmente a cada um o meu próprio olhar. Detestava, por exemplo, o meu rosto, considerava-o abominável, e supunha até haver nele certa expressão vil; por isso, cada vez que ia à repartição, torturava-me, procurando manter-me do modo mais independente possível, para que não suspeitassem em mim a ignomínia e para expressar no semblante o máximo de nobreza. “Pode ser um rosto feio”, pensava eu, “mas, em compensação, que seja nobre, expressivo e, sobretudo, inteligente ao extremo”. No entanto, com certeza e amargamente, eu sabia que nunca poderia expressar no rosto essas perfeições. Mas o mais terrível era que, decididamente, eu o achava estúpido. Eu me contentaria plenamente com a inteligência. A tal ponto que me conformaria até com uma expressão vil, desde que o meu rosto fosse considerado, ao mesmo tempo, muito inteligente.
E por que estais convencidos tão firme e solenemente de que é vantajoso para o homem apenas o que é normal e positivo, numa palavra, unicamente a prosperidade? Não se enganará a razão quanto às vantagens? Talvez o homem não ame apenas a prosperidade? Talvez ele ame, na mesma proporção, o sofrimento? Talvez o sofrimento lhe seja exatamente tão vantajoso como a prosperidade? O homem, às vezes, ama terrivelmente o sofrimento, ama-o até a paixão, isto é um fato. No caso, é inútil recorrer à história universal; interrogai a vós mesmos, se sois homens e vivestes um pouco sequer. E, quanto à minha opinião pessoal, creio que amar apenas a prosperidade é, de certo modo, até indecente. Bem ou mal, quebrar às vezes algo é também muito agradável. No caso, não estou propriamente defendendo o sofrimento e tampouco a prosperidade. Defendo... o meu capricho e que ele me seja assegurado, quando necessário. O sofrimento, por exemplo, não é admitido nos vaudevilles, eu sei. No palácio de cristal, ele é simplesmente inconcebível: o sofrimento é dúvida, é negação, e o que vale um palácio de cristal do qual se possa duvidar? E, no entanto, estou certo de que o homem nunca se recusará ao sofrimento autêntico, isto é, à destruição e ao caos. O sofrimento... mas isto constitui a causa única da consciência. Embora tenha afirmado, no início, que a consciência, a meu ver, é a maior infelicidade para o homem, sei que ele a ama e não a trocará por nenhuma outra satisfação. A consciência, por exemplo, está infinitamente acima do dois e dois. Depois do dois e dois, certamente, nada mais restará, não só para fazer, mas também para conhecer. Tudo o que será possível, então, será unicamente calar os cinco sentidos e imergir na contemplação. Bem, com a consciência obtém-se o mesmo resultado, isto é, também não haverá nada a fazer; mas pelo menos poderemos espancar a nós mesmos, de vez em quando, e isto, apesar de tudo, infunde ânimo. Ainda que seja retrógrado, é sempre melhor que nada.
O homem gosta de criar e de abrir estradas, isto é indiscutível. Mas por que ama também, até a paixão, a destruição e o caos? Dizei-me! Mas eu mesmo quero dizer separadamente duas palavras sobre o assunto. Não amará ele a tal ponto a destruição e o caos (é indiscutível que ele às vezes os ama e muito, não há dúvida sobre isto) porque teme instintivamente atingir o objetivo e concluir o edifício em construção? Como podeis sabê-lo? Talvez ele ame o edifício apenas a distância e nunca de perto; talvez ele goste apenas de criá-lo, e não viver nele, deixando-o depois para os animaux domestiques, isto é, formigas, carneiros etc.etc. Já as formigas têm um gosto de todo diferente. Elas possuem um edifício surpreendente no gênero, indestrutível para os séculos: o formigueiro. As dignas formigas começaram pelo formigueiro e certamente acabarão por ele, o que confere grande honra à sua constância e caráter positivo. Mas o homem é uma criatura volúvel e pouco atraente e, talvez, a exemplo do enxadrista, ame apenas o processo de atingir o objetivo, e não o próprio objetivo. E — quem sabe? —, não se pode garantir, mas talvez todo o objetivo sobre a terra, aquele para o qual tende a humanidade, consista unicamente nesta continuidade do processo de atingir o objetivo, ou, em outras palavras, na própria vida e não exatamente no objetivo, o qual, naturalmente, não deve ser outra coisa senão que dois e dois são quatro, isto é, uma fórmula; mas, na realidade, dois e dois não são mais a vida, meus senhores, mas o começo da morte. Pelo menos, o homem sempre temeu de certo modo este dois e dois são quatro, e eu o temo até agora. Suponhamos que o homem não faça outra coisa senão procurar este dois e dois são quatro: ele atravessa os oceanos a nado, sacrifica a vida nesta busca, mas, quanto a encontrá-lo realmente... juro por Deus, tem medo. Bem que ele sente: uma vez encontrado isto, não haverá mais o que procurar. Operários que terminam uma tarefa com certeza recebem dinheiro e vão a um botequim, acabando no distrito policial — bem, aí estão ocupações para uma semana. Mas o homem para onde irá? Percebe-se nele constantemente algo de inábil toda vez que atinge tais objetivos. Ele ama o ato de alcançar, mas, alcançar de fato, nem sempre. E isto, está claro, é ridículo ao extremo. Numa palavra, o homem está arranjado de modo cômico; em tudo isto, provavelmente, há um trocadilho. Mas dois e dois são quatro é, apesar de tudo, algo totalmente insuportável. Dois e dois são quatro constitui, a meu ver, simplesmente uma impertinência. Dois e dois fica feito um peralvilho, atravessado no vosso caminho, as mãos nas cadeiras, cuspindo. Estou de acordo em que dois e dois são uma coisa admirável; mas, se é para elogiar tudo, então dois e dois são cinco também constitui, às vezes, uma coisinha muito simpática.
Penso até que a melhor definição do homem seja: um bípede ingrato.
De fato, se a vontade se combinar um dia completamente com a razão, passaremos a raciocinar em vez de desejar, justamente porque não podemos, por exemplo, conservando o uso da razão, querer algo desprovido de sentido e, deste modo, ir conscientemente contra a razão e desejar aquilo que é nocivo a nós próprios... E visto que todas as vontades e todos os raciocínios podem ser realmente calculados — pois algum dia hão de se descobrir as leis do nosso suposto livre-arbítrio —, então, deixando-se de lado as brincadeiras, será possível elaborar uma espécie de tabela, e nós passaremos realmente a desejar de acordo com esta. Se, por exemplo, efetuados uns cálculos, me demonstrarem que, se eu fiz uma figa (Na Rússia, o gesto tem sentido ofensivo. (N. do T.)) a uma determinada pessoa, foi porque deveria fazê-lo, irremissivelmente, de tal ou qual modo, então o que sobrará de livre em mim, sobretudo se sou um sábio e terminei um curso de ciências em alguma parte? Neste caso, poderei calcular de antemão toda a minha vida, por um prazo de trinta anos; numa palavra, mesmo que isto se arranje, nada mais teremos a fazer; será preciso aceitar tudo, de qualquer modo. E, em geral, devemos repetir a nós mesmos, sem descanso, que, impreterivelmente, em tal momento e em tais circunstâncias, a natureza não nos consulta; que é preciso aceitá-la tal como ela é, e não como nós a imaginamos, e, se realmente ansiamos por uma tabela e um calendário, bem... e mesmo por uma retorta, neste caso — que fazer? — é preciso aceitar também a retorta! Senão, ela vai impor-se prescindindo de nós...
Com efeito, o resultado direto e legal da consciência é a inércia, isto é, o ato de ficar conscientemente sentado de braços cruzados. Já aludi a isto há pouco. Repito, repito com insistência: todos os homens diretos e de ação são ativos justamente por serem parvos e limitados. Como explicá-lo? Do seguinte modo: em virtude de sua limitada inteligência, tomam as causas mais próximas e secundárias pelas causas primeiras e, deste modo, se convencem mais depressa e facilmente que os demais de haver encontrado o fundamento indiscutível para a sua ação e, então, se acalmam; e isto é de fato o mais importante. Para começar a agir, é preciso, de antemão, estar de todo tranquilo, não conservando quaisquer dúvidas. E como é que eu, por exemplo, me tranquilizarei? Onde estão as minhas causas primeiras, em que me apoie? Onde estão os fundamentos? Onde irei buscá-los? Faço exercício mental e, por conseguinte, em mim, cada causa primeira arrasta imediatamente atrás de si outra, ainda anterior, e assim por diante, até o infinito. Tal é, de fato, a essência de toda consciência, do próprio ato de pensar. E assim chegamos de novo às leis da natureza. E qual é, afinal, o resultado? Exatamente o mesmo. Lembrai-vos: ainda há pouco falei de vingança. (Provavelmente não atestastes nisso.) Já foi dito: o homem se vinga porque acredita que é justo. Quer dizer que ele encontrou a causa primeira, o fundamento: a justiça. Isto é, como ele está tranquilizado por todos os lados, vinga-se calmamente e com êxito, convicto de que pratica uma ação honesta e justa. Mas eu não vejo nisso justiça nem qualquer espécie de virtude; se começar a vingar-me, será unicamente por maldade. Esta, naturalmente, poderia sobrepujar tudo, todas as minhas dúvidas e, de fato, poderia funcionar com pleno êxito em lugar da causa primeira, e justamente por não ser a causa. Mas que fazer se não tenho sequer maldade? (Ainda há pouco foi assim mesmo que eu comecei.) O meu rancor, em virtude mais uma vez dessas execráveis leis da consciência, está sujeito à decomposição química. Quando se repara, o objeto volatiliza-se, as razões se evaporam, não se encontra o culpado, a ofensa não é mais ofensa, mas fatum, algo semelhante à dor de dentes, da qual ninguém é culpado, e, por conseguinte, resta mais uma vez a mesma saída, isto é, bater no muro, do modo mais doloroso. Assim, desiste-se, por não se ter encontrado a causa primeira. Mas experimenta apaixonar-te cegamente pelo teu sentimento, sem discussão, sem uma causa primeira, repelindo a consciência ao menos durante esse período. Odeia ou ama, apenas para não ficares sentado de braços cruzados. Depois de amanhã, o mais tardar, começarás a odiar-te, porque ludibriaste a ti mesmo, conscientemente. Resultado: uma bolha de sabão e a inércia. Ah, senhores, é possível que me considere um homem inteligente apenas porque, em toda a vida, não pude começar nem acabar coisa alguma. Admitamos que eu seja um tagarela, um tagarela inofensivo, magoado, como todos nós. Mas que fazer, se a destinação única e direta de todo homem inteligente é apenas a tagarelice, uma intencional transferência do oco para o vazio (Em russo, uma frase feita. (N. do T.))?
“Ha, ha, ha! Depois disso, o senhor encontrará prazer mesmo numa dor de dentes!”, exclamareis rindo. — Como não? Há prazer mesmo numa dor de dentes — respondo. — Tive dor de dentes um mês inteiro; sei o que é isto. Neste caso, naturalmente, a pessoa não se enfurece em silêncio, mas geme; no entanto, não são gemidos sinceros, são gemidos maldosos, e tudo consiste justamente nessa maldade. Nesses gemidos é que se expressa o prazer do sofredor; se não sentisse neles prazer, não iria sequer soltá-los. É um bom exemplo, meus senhores, e vou desenvolvê-lo. Nestes gemidos se expressa, em primeiro lugar, toda a inutilidade de vossa dor, humilhante para a nossa consciência; toda a legalidade da natureza, com a qual, naturalmente, pouco vos importais, mas que, apesar de tudo, vos faz sofrer, enquanto ela não sofre. Expressa-se neles a consciência de que não tendes um inimigo, mas a dor existe; a consciência de que, apesar de todos os Wahenheim (Em 1864 apareciam frequentemente nos jornais de São Petersburgo anúncios dos dentistas Wahenheim. (Nota de I. Z. Siérman para a edição soviética de 1956-1958.)), sois plenamente escravos dos vossos dentes; de que, se alguém quiser, os vossos dentes deixarão de doer, e, se não quiser, hão de doer uns três meses mais; finalmente, se ainda não concordais e mesmo assim protestais, resta-vos, para vosso consolo, dar uma surra em vossa própria pessoa ou esmurrar do modo mais doloroso o vosso muro, e absolutamente nada mais. Bem, é justamente por essas ofensas sangrentas, por essas zombarias, não se sabe da parte de quem, que começa por fim o prazer, que chega, às vezes, à suprema voluptuosidade. Peço-vos, senhores: prestai um dia atenção aos gemidos de um homem instruído do século XIX que sofra de dor de dentes, no segundo ou terceiro dia da afecção, por exemplo, quando ele já começa a gemer, não como o fazia no primeiro dia, isto é, não simplesmente porque lhe doam os dentes; não do modo como o faz algum rude mujique, mas como geme um homem atingido pelo desenvolvimento geral e pela civilização europeia, um homem “que renunciou ao solo e aos princípios populares” (Expressão muito em voga nos meios revolucionários russos na época, dos quais surgiria, poucos anos depois, o movimento populista. (N. do T.)), como se diz agora. Os seus gemidos tornam-se maus, perversos, vis, e continuam, dias e noites seguidos. E ele próprio percebe que não trará nenhum proveito a si mesmo com os seus gemidos. Melhor do que ninguém, ele sabe que apenas tortura e irrita a si mesmo e aos demais. Sabe que até o público, perante o qual se esforça, e toda a sua família já o ouvem com asco, não lhe dão um níquel de crédito e sentem, no íntimo, que ele poderia gemer de outro modo, mais simplesmente, sem garganteios nem sacudidelas, e que se diverte, por maldade e raiva. Pois bem, é justamente em todos esses atos conscientes e infames que consiste a volúpia. “Eu vos inquieto, faço-vos mal ao coração, não deixo ninguém dormir. Pois não durmais, senti vós também, a todo instante, que estou com dor de dentes. Para vós, eu já não sou o herói, que anteriormente quis parecer, mas simplesmente um homem ruizinho, um chenapan (Vagabundo, bandido, calhorda, em francês. (N. do T.)). Bem, seja! Estou muito contente porque vós me decifrastes. Senti-vos mal, ouvindo os meus gemidos ignobeizinhos? Pois que vos sintais mal; agora, vou soltar, em vossa intenção, um garganteio ainda pior...” Não compreendeis, mesmo agora, senhores? Não, ao que parece é preciso adquirir um profundo desenvolvimento, uma profunda consciência, para compreender todas as sinuosidades dessa volúpia! Estais rindo? Fico muito contente. Os meus gracejos, senhores, são naturalmente de mau gosto, desiguais, incoerentes, repassados de autodesconfiança. Mas isto realmente ocorre porque eu não me respeito. Pode porventura um homem consciente respeitar-se um pouco sequer?
Mas, senhores, quem é que pode vangloriar-se das próprias doenças, e ainda procurar causar com elas um efeito?
Juro-vos, senhores, que uma consciência muito perspicaz é uma doença, uma doença autêntica, completa.
Dizei-me: de que pode falar um homem decente, com o máximo prazer? Resposta: de si mesmo. Então, também vou falar de mim.
Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo. Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos. Ademais, sou supersticioso ao extremo; bem, ao menos o bastante para respeitar a medicina. (Sou suficientemente instruído para não ter nenhuma superstição, mas sou supersticioso.) Não, se não quero me tratar, é apenas de raiva. Certamente não compreendeis isto. Ora, eu compreendo. Naturalmente não vos saberei explicar a quem exatamente farei mal, no presente caso, com a minha raiva; sei muito bem que não estarei a “pregar peças” nos médicos pelo fato de não me tratar com eles; sou o primeiro a reconhecer que, com tudo isto, só me prejudicarei a mim mesmo e a mais ninguém. Mas, apesar de tudo, não me trato por uma questão de raiva. Se me dói o fígado, que doa ainda mais.
Miguel Medeiros started reading Memórias do Subsolo by Fyodor Dostoevsky

Memórias do Subsolo by Fyodor Dostoevsky
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