User Profile

Miguel Medeiros

[email protected]

Joined 1 year, 5 months ago

This link opens in a pop-up window

Miguel Medeiros's books

Currently Reading (View all 5)

2024 Reading Goal

Success! Miguel Medeiros has read 52 of 48 books.

Frei Betto: Batismo de sangue (Paperback, Português language, Rocco) No rating

Lançado originalmente em 1982, Batismo de sangue ganhou o prêmio Jabuti na categoria de melhor …

Viver na clandestinidade é como tornar-se invisível para os outros. As pessoas nos veem, mas não conhecem, e os que conhecem não podem nos encontrar senão por acaso. Como toda situação de completo despojamento, faz-nos sentir mais livres. Trocar de nome dá sensação de vida nova – só então compreendo por que os institutos religiosos adotavam esse costume ao receber seus noviços. O meu era “Vitor” e exigia-me estar sempre atento, para não pensar que chamavam outra pessoa. “Vídor, você querr mas arroz?”, perguntava Mrs. A., e, meio perplexo, eu constatava que era comigo mesmo. Todo tempo de espera é longo, muito longo. Não há muito a fazer quando só resta aguardar uma saída. É como estar dentro de um imenso cilindro, no qual há centenas de portas desenhadas e semelhantes à única verdadeira. Não é nada fácil encontrá-la, e abri-la depende mais de quem está do lado de fora. Não obstante, na cabeça dos amigos, estamos mergulhados em plena ação, e eles são capazes de nos identificar por trás de cada notícia de jornal que brilha, rápida, como um palito de fósforo aceso em meio à escuridão. De fato, os dias custam a passar, o relógio parece tomado por uma preguiça crônica, que se arrasta ao ritmo aritmético do calendário. Somos obrigados a violentar nossos hábitos e costumes. O corpo deve adaptar-se à mobilidade restrita, controlada, temerária, enquanto a mente vagueia pelo medo, povoa-se de recordações e multiplica perguntas que não têm respostas imediatas. No quarto de empregada em que eu dormia ainda era possível ocupar-me o dia todo com leituras e ouvir rádio. Pior situação viviam outros companheiros que, morando em pensões, eram forçados a fingir um ritmo normal de vida: levantavam cedo e perambulavam o dia todo pela cidade, à espera da hora de regressar ao quarto, como se retornassem do trabalho. Por vezes eu saía de casa para encontrar pessoas que não deveriam conhecer meu refúgio, e através das quais eu mantinha contato com meu próprio universo. A imensidão de São Paulo oferece muitas alternativas para quem vive na clandestinidade. O diabo é que a cabeça da gente é pequena, e a imaginação, medrosa  Achava todo lugar suspeito. Mal conseguia dialogar. Trocava as informações necessárias e, dominado pelo nervosismo, acreditava que a viatura policial vislumbrada no horizonte vinha exatamente em minha direção. Não seria um policial do DEOPS aquele pipoqueiro da esquina? Esses homens que descarregam bujões de gás, exatamente nesta casa ao lado, não são militares da Oban? Ora, os heróis nunca morrem hoje. Chegam a acreditar que são sempre mais espertos que a repressão. Habituados ao risco, julgam-se invisíveis. Vão a lugares onde jamais admitiriam encontrar um companheiro, como certos cinemas e restaurantes. Creem que, se forem presos, não será nunca hoje, talvez amanhã. Por isso, naqueles idos, várias vezes cruzei com Marighella e outros dirigentes revolucionários na churrascaria A Toca, que ficava na esquina das ruas Turiassu e Cardoso de Almeida, em Perdizes. O proprietário, Jacinto Pasqualini, suava frio, ao calor das brasas que assavam as carnes, quando coincidiam, no mesmo espaço, guerrilheiros e policiais. Tratava de separá-los em mesas distantes e de avisar-nos. É possível que aqueles investigadores e delegados jamais imaginassem que naquela roda alegre de chope, em torno de saborosas picanhas, estavam alguns dos mais procurados “terroristas” do país, como Aloísio Nunes Ferreira, Antônio Carlos Madeira, Rolando Fratti, Agonaldo Pacheco e Carlos Marighella, cuja peruca improvisada parecia chamar mais atenção do que ele próprio. Foi naquele período que conheci melhor meus anjos da guarda, os amigos capazes de todo e qualquer sacrifício em meu favor. Só então a vida mostrou-me o que significa esta palavra de Jesus no capítulo 10 de Marcos, versículos 28 a 30: “Em verdade vos digo que não há quem tenha deixado casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos ou terras por minha causa ou por causa do Evangelho, sem que receba cem vezes mais, agora, neste tempo, casas, irmãos e irmãs, mãe e filhos e terras, com perseguições.” Entre perseguições, seria a tradução preferível. Quantas pessoas dispostas a me abrigar em suas casas por simples indicação de um amigo, sem conhecimento prévio! Quantos arriscavam empregos, e a própria pele, na vontade de ajudar e apoiar! (Note-se que Jesus não promete “pais”. Para ele, só há um Pai em quem confiar.) A cada vez que encontrava esses “irmãos e irmãs”, uma intensa alegria se apossava de mim. Entre olhares que diziam mais que palavras, trocávamos notícias, impressões, esperanças. A separação era sofrida, embora camuflada sob o sentimento do dever. Mas quem de nós não sonha com um futuro no qual desfrutaremos incessantemente das amizades que amamos?

Batismo de sangue by  (Page 85 - 87)

Frei Betto: Batismo de sangue (Paperback, Português language, Rocco) No rating

Lançado originalmente em 1982, Batismo de sangue ganhou o prêmio Jabuti na categoria de melhor …

Junto à Capela do Vergueiro, vicariada pelos dominicanos, funcionava a Unilabor, fábrica de móveis fundada por Frei João Batista dos Santos. Pretendia-se provar aos capitalistas ser possível uma empresa lucrativa e justa, segundo os parâmetros da doutrina social da Igreja. O lucro era repartido entre os trabalhadores, reservada a parcela destinada a novos investimentos. A reunião da diretoria da empresa implicava paralisar a produção; os empregados eram também o empregador. O sistema, entretanto, encarregou-se de reiterar que não se criam ilhas de socialismo dentro da engrenagem capitalista. Isso era um sonho utópico. Ao pagar o “salário justo” a seus operários, a Unilabor se descapitalizou e não suportou a concorrência. A pressão dos bancos acabou por dar-lhe o tiro de misericórdia. Frei João Batista chamou-os, num livro contundente, de “os chifres do diabo”.

Batismo de sangue by  (Page 71)

Frei Betto: Batismo de sangue (Paperback, Português language, Rocco) No rating

Lançado originalmente em 1982, Batismo de sangue ganhou o prêmio Jabuti na categoria de melhor …

Como os frades dominicanos assumiram, no Brasil, posições de esquerda? Abandonaram a fé e abraçaram o marxismo? Lobos travestidos de cordeiros revestidos de hábitos brancos? O papa João XXIII varreu, como ele mesmo disse, a poeira acumulada no trono de Pedro. Seu breve pontificado (1958-1962) abalou os alicerces da Igreja Católica. Não se pense, entretanto, que o aggiornamento brotou da cabeça do pontífice. O Concílio Ecumênico Vaticano II, convocado por ele, foi o desaguadouro do movimento de renovação fermentado no interior da Igreja ao longo da primeira metade do século XX. Na Bélgica, o padre Joseph Cardijn fundara a JOC em 1925 e, em consequência, a Ação Católica. O apostolado perdia o ranço devotivo da Congregação Mariana e adquiria uma dimensão social que levaria militantes cristãos a atuarem dentro do mundo operário, cuja perda para a Igreja fora lamentada por Pio XI (1922-1939). Os padres-operários trocavam a batina pelo macacão da fábrica, o borrifador de água benta pela ferramenta, as lições formais do catecismo pelos valores do Evangelho. As novas vocações dominicanas brasileiras eram enviadas à França para cursar filosofia e teologia. À semelhança dos jovens de Vila Rica remetidos, no século XVIII, à Universidade de Coimbra, retornavam com a cabeça prenhe de ideias progressistas. Imbuíam-se da filosofia de Maritain e da teologia do padre Congar; do pensamento militante de Emmanuel Mounier e dos exemplos de ação conjunta de marxistas e cristãos na Resistência francesa.

Batismo de sangue by  (Page 69)

Frei Betto: Batismo de sangue (Paperback, Português language, Rocco) No rating

Lançado originalmente em 1982, Batismo de sangue ganhou o prêmio Jabuti na categoria de melhor …

É através das dissidências que a História acerta os seus passos. Há um momento em que as possibilidades de uma proposta – religiosa ou política – parecem esgotar-se sob o peso dos anos, da rigidez de seus princípios, da inflexibilidade de sua disciplina, da intransigência de seus dogmas, da prepotência de seus líderes. Como a fonte seca à beira da estrada, incapaz de saciar a sede dos peregrinos, a proposta vê-se rejeitada por seus discípulos dispostos a caminhar sem a tutela que lhes atrasa o passo. Foi o que ocorreu na Palestina do século I, onde o judaísmo, atravancado pelo fundamentalismo moralista dos fariseus e pelo elitismo exclusivista dos saduceus, cindiu-se numa nova, prodigiosa e revolucionária “seita”, cujos membros anunciavam a ressurreição de um jovem judeu crucificado pelos romanos, Jesus de Nazaré. Toda a história da Igreja é como uma teia entrelaçada por experiências místicas e disputas ideológicas, influências culturais e manobras políticas, heresias doutrinárias e inovações pastorais. O centro dessa teia, a fé no Senhor, permanece intangível. Mas sua extensão em intrincados labirintos é, de um lado, sinal de diversidade dos dons do Espírito e, de outro, obra dessa incessante busca que faz do ser humano, em seus anelos de perfeição, o aprendiz de Deus. A dissidência de Paulo, o Apóstolo, quebrou o caráter judaizante da primitiva Igreja de Pedro, estendendo-a, como boa-nova, aos pagãos, até os limites do Império Romano. Entretanto, operou-se entre os cristãos uma experiência que, embora carregada de exceções, constituiu a chave de sua unidade básica através dos séculos: a dissidência não significa, necessariamente, ruptura. E é justamente essa capacidade de uma instituição suportar a emergência do novo e assumir a gravidez que prenuncia, ao mesmo tempo, a sua transformação e o seu futuro, que dá a ela perenidade. Se a Igreja dos papas revestidos de todo poder não suportasse o desafio evangélico da presença incômoda de um Francisco de Assis, teria sido tragada pelos séculos, como as águas do mar acobertam a embarcação que afunda sob o peso de sua excessiva carga. Lutero sabia disso e fez o que pôde para prosseguir na luta interna. Mas a formação dos Estados europeus, os interesses dos príncipes em uma fonte alternativa de sacralização do poder – para escaparem ao monolitismo romano –, o jogo econômico de um Renascimento que via agonizar a Idade Média e expandir o mercantilismo que, em breve, daria ao trabalho meios industriais de produção, inaugurando o capitalismo, fizeram com que a divergência de Lutero adquirisse foro de ruptura e inovação. Desde então, a luta interna se enfraqueceu nas Igrejas protestantes, multiplicando as denominações segundo o número de dissidências. Essa tensão entre a ortodoxia e a crítica que a desnuda, tornando-a vulnerável, existe da mesma forma na história dos partidos políticos, mormente entre as tendências de esquerda. Embora feita de dissidências e de discordâncias, a política, como a religião, não as suporta e, se não pode abatê-las pela mão de ferro do poder, recorre à difamação, à discriminação e às explicações pretensamente psicológicas que reduzem o adversário a um doente mental. Mesmo nas sociedades burguesas que ostentam o título de democráticas, a discordância não passa de um acordo de cavalheiros para encobrir reais antagonismos. A lei que protege o patrão oprime o empregado; o direito reconhecido do médico é desprezado no paciente; o aparelho jurídico que não confunde o réu de colarinho e gravata com seu gesto criminoso é o mesmo que reduz a existência do pobre ao momento infeliz de transgressão da lei. A discordância é admitida, sobretudo, enquanto não ameaça passar o capital às mãos de quem trabalha. A árvore genealógica de partidos e movimentos de esquerda é rica em ramificações. De Lênin a Marighella, todos apostataram aos olhos de seus antigos camaradas. Quando chega ao poder, o “herege” é redimido pela vitória e absolvido pelos que o julgavam equivocado. Quando se é abatido em plena luta, como a ave em seu voo, a morte é o atestado de que necessitavam os “ortodoxos” à sua razão indelével, aferrada a conceitos e às normas que sacralizam um partido, fazendo-o transcender o real. Entretanto, as novas gerações veem na dissidência a conquista da liberdade, ainda que, de fato, signifique recuo ou desvio. Daí a facilidade com que os mais jovens aderem às propostas do momento, que parecem brotar, como por encanto, da própria conjuntura que lhes é contemporânea. Contudo, além da torrente de palavras que escorre dos estuários de cada posição, na disputa inútil de uma certeza que o raciocínio não comporta, resta a prática como critério da verdade. Ela e o tempo dirão quem está certo e quem está errado. Indiferentes ao nosso maniqueísmo, é possível que a prática e o tempo sejam menos intolerantes e apontem os erros e os acertos de ambos os pratos da balança. Artífices reais da História, as classes populares seguirão sempre como o fiel da balança, pendendo para um dos lados e confirmando as teorias que o inclinam na direção do futuro. Nesse movimento dialético – da árvore genealógica que muitas vezes se abre na infinidade de galhos e, por outras, se une em torno do tronco – é que a história das tendências políticas de esquerda tece as suas razões, que, contudo, só se fazem realidade quando deitam raízes na alma, na esperança e no anseio irreprimível de liberdade das camadas oprimidas.

Batismo de sangue by  (Page 42 - 45)

Frei Betto: Batismo de sangue (Paperback, Português language, Rocco) No rating

Lançado originalmente em 1982, Batismo de sangue ganhou o prêmio Jabuti na categoria de melhor …

Em 1966, Marighella escreveu A crise brasileira, trabalho teórico no qual analisa a conjuntura nacional a partir da estrutura de classes em nosso país – baseado nas obras de Nelson Werneck Sodré – e critica o Partido por resguardar-se de qualquer atividade consequente, acomodado na ilusão de um processo eleitoral limpo e, ao mesmo tempo, refratário ao divórcio da burguesia. “Quando a liderança do proletariado se subordina à liderança da burguesia ou com ela se identifica”, escreveu, “a aplicação da linha revolucionária sofre inevitavelmente desvios para a esquerda e a direita.” Após identificar os erros do Partido, como “o reboquismo” ao governo, “a perda do sentido de classe”, defendia a organização do movimento de massas, a “frente única antiditadura”, não para “visar, nas condições atuais, a pressão sobre o governo... O objetivo do movimento de massas é levar a ditadura à derrota, substituí-la por outro governo”. Admitia que “o caminho pacífico está superado (...) Sem uma estratégia revolucionária, sem a ação revolucionária apoiada no trabalho pela base e não exclusivamente de cúpula, é impossível construir a frente única, movimentar as massas e dar-lhes a liderança exigida para a vitória sobre a ditadura”. Essa estratégia apoiava-se no proletariado, nas massas rurais, nos intelectuais e nos estudantes, “as forças básicas da revolução”. Malgrado suas desilusões, não advogou o abandono de certas alianças com a burguesia, embora sublinhasse que “não pode ser o trabalho fundamental (...) O trabalho mais importante, aquele que tem caráter prioritário, é a ação no campo, o deslocamento das lutas para o interior do país, a conscientização do camponês. No esquema estratégico brasileiro, o pedestal da ação do proletariado é o trabalhador rural. A aliança dos proletários com os camponeses é a pedra de toque da revolução brasileira”. Ao retomar “o princípio da unidade e luta com a burguesia dentro da frente única”, o autor referiu-se, numa frase, à questão que merecera menção passageira no texto anterior: “Um dado valioso para essa unidade – tendo em vista atrair o centro – é a aliança com os católicos e, em particular, com a esquerda católica.” A parte final do texto foi dedicada às “Guerrilhas como forma de luta”. Acreditava Marighella que “a  luta de guerrilhas é – no caso brasileiro – uma das formas de luta de resistência das massas. As guerrilhas são uma forma de luta complementar. Em si mesmas elas não decidem a vitória final”. Entendia, naquele momento, “que a luta de guerrilhas não é inerente às cidades, não é uma forma de luta apropriada às áreas urbanas. A luta de guerrilhas é típica do campo, das áreas rurais, onde há terreno para o movimento, e onde a guerrilha pode expandir-se”. Sua utilização não dispensava “as mínimas possibilidades legais [de luta] nos vários terrenos, inclusive no eleitoral e no jurídico”. Todavia, não pensava em focos guerrilheiros de extração pequeno-burguesa: “Nada parece aprovar a ideia de uma luta de guerrilhas que não surja das entranhas do movimento brasileiro. A mais perfeita identificação com os camponeses, em seus usos, costumes, trajes, psicologia, constitui fator de decisiva importância... A natureza peculiar da guerrilha, pelo seu cunho irregular e pelo desapego a todo e qualquer convencionalismo militar, é incompatível com princípios táticos que não encontrem por parte do povo amparo, cobertura, apoio e a mais extensa e profunda simpatia.” No parágrafo final, deixou clara a sua posição frente ao foquismo propalado a partir das interpretações que Régis Debray – filósofo francês que acompanhou Che Guevara nas matas da Bolívia – fizera da revolução cubana: “Ninguém espera que a guerrilha seja o sinal para o levante popular ou para a súbita proliferação de focos insurrecionais.” A história, entretanto, não é como um trem que segue o seu percurso dentro dos trilhos de nossas intenções e nem obedece as horas marcadas de nossas esperanças.

Batismo de sangue by  (Page 37 - 40)

Frei Betto: Batismo de sangue (Paperback, Português language, Rocco) No rating

Lançado originalmente em 1982, Batismo de sangue ganhou o prêmio Jabuti na categoria de melhor …

“Os brasileiros estão diante de uma alternativa” – escreveu Marighella em Por que resisti à prisão. “Ou  resistem à situação criada com o golpe de 1º de abril ou se conformam com ela (...) Antes tínhamos a chamada democracia representativa. Nela, a inflação prosseguia em sua marcha acelerada. Os trustes norte-americanos mandavam. O latifúndio predominava. Milhões de homens do povo não podiam votar. Analfabetos e praças não tinham o direito de voto. Os comunistas não podiam ser eleitos, ainda que pudessem votar. Era uma democracia racionada. E racionada por isso. Porque os direitos individuais pelo menos eram respeitados, mas as restrições à participação do povo nessa democracia eram flagrantes. E injustas. Tal democracia, pela sua própria estrutura, constituía por si mesma um empecilho à realização das reformas sociais – as chamadas reformas de base. E, por mais que oferecessem oportunidades – amparando os direitos individuais –, sentia-se emperrada. E não podia avançar pacificamente. Como de fato não avançou; e acabou golpeada. As forças de direita e o fascismo militar brasileiro deram-lhe o tiro de misericórdia.” “O que havia de errado nesse tipo de democracia vinha de longe. Era um vício de origem. Um pecado original. Não se tratava de uma democracia feita pelo povo. Quem a instituiu foram as classes dirigentes. Nesse arcabouço erigido pelas elites, as massas conquistaram alguns direitos, ali introduzidos graças às suas lutas. Historicamente o mal dessa democracia era, acima de tudo, o seu conteúdo de elite, com a ostensiva marginalização das grandes massas exploradas – o proletariado crescendo sem nunca chegar à integração de direitos exigida pelo seu papel na produção. E os camponeses inteiramente por fora – párias da democracia – sob a ultrajante justificativa de sua condição de atraso e suprema escravização aos interesses dos senhores da terra.”

Batismo de sangue by  (Page 36 - 37)

Frei Betto: Batismo de sangue (Paperback, Português language, Rocco) No rating

Lançado originalmente em 1982, Batismo de sangue ganhou o prêmio Jabuti na categoria de melhor …

O conflito ideológico entre a União Soviética e a China semearia, no seio do PCB, a crise que se iniciou em seu V Congresso, em 1960, para consumar-se dois anos depois: João Amazonas, Pedro Pomar e Maurício Grabois – membros do Comitê Central – criticaram a linha de Prestes e Marighella, como “revisionista e direitista”, e assumiram a defesa das posições do PC chinês. Nesse meio-tempo, em setembro de 1961, sob a alegação de facilitar um eventual pedido de registro eleitoral, obtiveram, da Conferência Nacional do Partido Comunista do Brasil, permissão para modificar o nome para Partido Comunista Brasileiro. Aos olhos dos dissidentes maoistas, a mudança simbolizava o abandono das autênticas posições proletárias e revolucionárias. Convocaram a Conferência Nacional Extraordinária e, em fevereiro de 1962, romperam com o Partido Comunista Brasileiro e prosseguiram organizados no Partido Comunista do Brasil (PC do B). Tais circunstâncias permitem às duas siglas reivindicar o direito de serem reconhecidas como o Partido Comunista fundado por Astrojildo Pereira, em 1922.

Batismo de sangue by  (Page 34 - 35)

Frei Betto: Batismo de sangue (Paperback, Português language, Rocco) No rating

Lançado originalmente em 1982, Batismo de sangue ganhou o prêmio Jabuti na categoria de melhor …

Ao deixar a casa de Coyoacán, Betinho e eu tínhamos a sensação de sair de uma prisão. Assustava-nos ainda saber que a peleja entre Trótski e Stálin não cessara com a morte de ambos. De alguma forma, eles sobrevivem. O primeiro, nos grupos vanguardistas que alimentam o mito das massas irredutivelmente revolucionárias e espontaneamente democráticas. O segundo, nos partidos que fazem uma interpretação dogmática do marxismo e, em nome do centralismo democrático, legitimam a prepotência autocrática  de seus dirigentes, únicos verdadeiros oráculos do passado, do presente e do futuro.

Batismo de sangue by  (Page 26)

commented on O capital by Karl Marx

Karl Marx: O capital (Paperback, Português language, 2013, Boitempo) 5 stars

Tradução vencedora do Prêmio Jabuti de Melhor Tradução (2014). O clássico de Marx foi originalmente …

Achei que O Capital seria um livro apenas de teoria, mas ele também faz um trabalho importante de denúncia dos tempos. Ele fala sobre horas de trabalho absurdas em fábricas, trabalho infantil, comida adulterada e a situação das costureiras e trabalho noturno

avatar for Miguel Miguel Medeiros boosted
Michela Murgia: Instruções para se tornar um fascista (Portuguese language, 2021, Âyiné) No rating

Instruções para se tornar um fascista é um livro urgente, que nasce para despertar consciências, …

«Mas será mesmo que os democratas progressistas e conservadores estarão dispostos a acreditar que não somos fascistas?», vocês podem muito bem se perguntar. Claro que sim, e a razão é obvia: no fundo eles desejam, com todas as forças, acreditar que o fascismo não existe, que é um fenômeno histórico superado e que não há nenhuma possibilidade de que volte a se apresentar Como consequência, vão espontaneamente ignorar todos os sinais que poderiam obrigá-los a reconhecer o fato de que sempre estivemos aqui, nunca fomos embora e há anos estamos nos reorganizando. Seremos chamados de «nostálgicos», «nova direitas», «nacionalistas» ou de outras formas, mas eles próprios não vão querer pronunciar a palavra fascistas, porque desperta não a nós, que estamos despertissimos, mas seus próprios fantasmas.

Instruções para se tornar um fascista by  (Biblioteca Âyiné) (Page 32 - 33)

O fascismo esta aí

Karl Marx: O capital (Paperback, Português language, 2013, Boitempo) 5 stars

Tradução vencedora do Prêmio Jabuti de Melhor Tradução (2014). O clássico de Marx foi originalmente …

“A mercadoria que eu te vendi distingue-se da massa das outras mercadorias pelo fato de seu uso criar valor e, mais do que isso, um valor maior do que aquele que ela mesma custou. Foi por isso que a compraste. O que do teu lado aparece como valorização do capital, do meu lado aparece como dispêndio excedente de força de trabalho. Tu e eu só conhecemos, no mercado, uma lei, a da troca de mercadorias. E o consumo da mercadoria pertence não ao vendedor que a aliena, mas ao comprador que a adquire. A ti pertence, por isso, o uso de minha força de trabalho diária. Mas por meio do preço que a vendo diariamente eu tenho de reproduzi-la a cada dia, pois só assim posso vendê-la novamente. Desconsiderando o desgaste natural pela idade etc., tenho de ser capaz de trabalhar amanhã com o mesmo nível normal de força, saúde e disposição que hoje. Não cansas de pregar-me o evangelho da ‘parcimônia’ e da ‘abstinência’. Pois bem! Desejo, como um administrador racional e parcimonioso, gerir meu próprio patrimônio, a força de trabalho, abstendo-me de qualquer desperdício irrazoável desta última. Quero, a cada dia, fazê-la fluir, pô-la em movimento apenas na medida compatível com sua duração normal e seu desenvolvimento saudável. Por meio de um prolongamento desmedido da jornada de trabalho, podes, em um dia, fazer fluir uma quantidade de minha força de trabalho maior do que a que posso repor em três dias. O que assim ganhas em trabalho eu perco em substância do trabalho. A utilização de minha força de trabalho e o roubo dessa força são coisas completamente distintas. Se o período médio que um trabalhador médio pode viver executando uma quantidade razoável de trabalho é de 30 anos, o valor de minha força de trabalho, que me pagas diariamente, é de 1/365 × 30, ou 1/10.950 de seu valor total. Mas se a consomes em 10 anos, pagas-me diariamente 1/10.950 em vez de 1/3.650 de seu valor total; portanto, apenas 1/3 de seu valor diário, e me furtas, assim, diariamente, 2/3 do valor de minha mercadoria. Pagas-me pela força de trabalho de um dia, mas consomes a de 3 dias. Isso fere nosso contrato e a lei da troca de mercadorias. Exijo, portanto, uma jornada de trabalho de duração normal, e a exijo sem nenhum apelo a teu coração, pois em assuntos de dinheiro cessa a benevolência. Podes muito bem ser um cidadão exemplar, até mesmo membro da Sociedade para a Abolição dos Maus-Tratos aos Animais, e viver em odor de santidade, mas o que representas diante de mim é algo em cujo peito não bate um coração. O que ali parece ecoar é o batimento de meu próprio coração. Exijo a jornada de trabalho normal porque, como qualquer outro vendedor, exijo o valor de minha mercadoria.”40

O capital by