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Miguel Medeiros quoted Brasil by Lilia Moritz Schwarcz
O registro dos primeiros achados do ouro no sertão das Minas começou a ser negociado entre a Coroa e seus descobridores paulistas ainda na metade inicial da década de 1690. Autorizado diretamente pelo rei de Portugal, Pedro II, o acordo garantia ao descobridor honras, mercês e a posse do achado. Além disso, a autoridade régia assegurava aos sertanistas de São Paulo o que, para eles, era mais importante: o privilégio de “administrar” os indígenas aprisionados no sertão e levados como força de trabalho escrava para o planalto de Piratininga. Só então o ouro apareceu.
As descobertas nas Minas ocorreram nessa mesma década, quase simultaneamente, em diferentes lugares mas sempre ao longo da linha que se estende entre as atuais cidades de Ouro Preto e Diamantina, entre a bacia do rio Doce e a do São Francisco. Aí — no centro do atual estado de Minas Gerais — o ouro estava esparramado em quantidade espantosa no leito dos rios e riachos que corriam no fundo dos vales ou nos pequenos planaltos elevados — as chapadas — que se alastravam pelas encostas vertiginosas do maciço do Espinhaço. Era um ouro miúdo que surgia na forma de pedrinhas faiscantes, grãos ou pó, de coloração amarelada, cinza-amarelada, preta, esbranquiçada, ou com aspecto opaco e muito sujo — este último era chamado de “ouro podre”. A cor preta resultava da mistura com o elemento químico paládio e indicava alta concentração de metal precioso; já a branca provinha da mistura do ouro com níquel e esse ouro tinha bem menos valor. Entretanto, qualquer que fosse o tipo ou a cor, era ouro farto: por todo lado havia punhados que durante milhões de anos se soltaram das fendas rochosas daquele maciço, a antiquíssima formação geológica de Minas Gerais. O ouro das Minas, de aluvião, estava à flor da terra e se distinguia de todo das peças maciças que os espanhóis extraíram das jazidas subterrâneas de ouro de beta, escavadas extensamente no México e no Alto Peru.
Como se descobriu depressa, as Minas eram Gerais. Em qualquer direção, e qualquer que fosse o rumo que se tomasse, podia-se achar ouro — o topônimo Minas Gerais, aplicado à capitania a partir do início da década de 1720, servia para indicar uma longa, contínua e contígua sequência de minas. As lavras mais relevantes foram encontradas na zona que ficaria conhecida como “distrito do ouro”, e as descobertas a princípio se concentraram nas margens da nascente do rio das Velhas, atualmente a área da Cachoeira das Andorinhas, próxima ao município de Ouro Preto. O povoamento acelerado nessa região redundaria na criação das primeiras três vilas das Minas, todas no ano de 1711: em janeiro, o arraial de Nossa Senhora do Carmo foi alçado à condição de vila; em junho, os núcleos mineradores de Ouro Preto, Antônio Dias, Padre Faria e Tripuí reuniram-se para dar origem a Vila Rica; e, ainda em julho, no arraial do Sabarabuçu foi oficializada a fundação da vila de Nossa Senhora da Conceição do Sabará — hoje, as cidades de Mariana, Ouro Preto e Sabará.
— Brasil by Lilia Moritz Schwarcz, Heloisa Murgel Starling (Page 110 - 111)
Miguel Medeiros quoted Brasil by Lilia Moritz Schwarcz
“Bandeiras” foi o nome dado, a partir da primeira metade do século XVIII, às expedições para o interior do país — o termo era comum a todas as regiões, podendo ainda ser substituído por outros, como “entradas”, “jornadas”, “empresas” ou “conquistas”. Entre os moradores do planalto de Piratininga, as bandeiras assumiram a forma militarizada de organização das expedições de caça e escravização dos índios ou de busca de metais preciosos, e, na visão de alguns historiadores do final do século XIX e início do XX, também teriam produzido um modo característico de vida: o bandeirantismo. As expedições que partiam da vila de São Paulo varreram os sertões mineiros, até onde foi possível tratando de ocultar dos representantes da Coroa na colônia a existência do ouro na área. Os paulistas tinham um bom motivo para agir assim: manter longe de casa a incômoda presença da administração colonial, sobretudo no que se referia ao peso dos tributos e ao rigor na aplicação da legislação metropolitana que impunha limites à escravização dos indígenas.
— Brasil by Lilia Moritz Schwarcz, Heloisa Murgel Starling (Page 110)
Miguel Medeiros quoted Brasil by Lilia Moritz Schwarcz
A essas alturas, o tráfico negreiro constituía um negócio dos mais lucrativos, e alguns senhores tinham mais interesse em “repor” um escravo morto que em ajudar na longa e dispendiosa criação de sua “propriedade”. Por sinal, a imagem difundida de que a escravidão brasileira teria sido mais amena que a norte-americana, uma vez que por lá teriam existido engenhos especializados na “criação de escravos”, é mais teórica do que real. Os motivos que explicam tal conduta nada têm de humanitários, e são o mais das vezes de ordem pragmática e comercial. Era custoso manter um escravo criança até que atingisse a idade produtiva. Portanto, melhor comprar um “novo” nos mercados abertos das cidades, os quais expunham os africanos como peças, coisas e bens. Os preços também variavam conforme “o uso”: mulheres e crianças eram menos bem avaliadas que homens e adultos. Antes dos oito anos eram crianças, depois dos 35, velhos, pouco aproveitáveis no trabalho pesado da cana. O “envelhecimento” ocorria cedo, assim como o fim da adolescência: a partir de oito anos e até os doze um escravo já era classificado como adulto. Há registros de cativos considerados “rapazes”, aliás “homens já feitos”, aos oito anos. O trabalho excessivo envelhecia e amadurecia, trapaceava com o tempo. Como veremos com mais detalhes, a civilização do açúcar originou um local de extremos: o doce da cana se fez às custas do travo da escravidão. Um mundo verdadeiramente novo, no sentido de diferente, ia sendo criado. Amargo açúcar; ardida doçura.
— Brasil by Lilia Moritz Schwarcz, Heloisa Murgel Starling (Page 77 - 78)
Miguel Medeiros quoted Brasil by Lilia Moritz Schwarcz
Vale lembrar um aspecto crucial, e muito peculiar, da economia açucareira no Brasil: a ausência de refinarias. E não apenas na colônia como também na metrópole portuguesa, que durante vários anos acabou deixando, além do comércio, a manufatura final do açúcar na mão dos holandeses. O Brasil ficou mais conhecido por seu açúcar “barreado”, resultado do produto ainda não refinado que se denominava de “pardo” ou “mascavado”. Esse tipo de açúcar, que circulou bastante pelas Antilhas e se tornou matéria-prima nas indústrias de refinação da Europa do Norte, representou grande parte da nossa produção.
Por falar nisso, sempre houve desconfiança em relação ao açúcar do Brasil. Falsificação na pesagem das caixas ou mesmo na declaração da qualidade era de praxe. “Açúcares inferiores” eram classificados como “brancos”; “açúcares batidos”, chamados de “machos” e considerados superiores. Como se vendia a caixa fechada, não existindo possibilidade de avaliar seu conteúdo, virou prática corrente colocar pedras no fundo das madeiras para aumentar o peso. Comerciantes reclamavam muito de tal expediente, dizendo que o “açúcar mais escuro” e as “atitudes mais escuras” acabavam com a reputação do mercado brasileiro. As consequências dessa associação entre o branco do açúcar — vinculado à “pureza” e assim valorizado — e o produto mais escuro, reputado como de pior qualidade, teriam vida metafórica longa no país.
Logo se ligou o branco dos senhores e o negro dos escravos a uma “evidência natural”: uma hierarquia dada pela natureza. A posição diferente dos dois grupos passava a ser explicada não por motivos históricos, econômicos e políticos, mas pelas cores da cana e pelo suposto “natural” de que quanto mais branco, melhor. Por sinal, até hoje a população brasileira se descreve a partir de graus de brancura que corresponderiam a níveis distintos na hierarquia da sociedade: “branco melado”, “branco sujo”, “quase branco”, “puxado para branco”, “mestiçado”, são termos que denunciam persistências e continuidades na percepção social das cores no Brasil.
Cana e escravidão formavam, assim, um par “intenso e extenso”. Se o cultivo e corte da cana levava um semestre inteiro, o fabrico do açúcar ocupava o outro semestre do ano, e os serviços eram sempre árduos. Para dar uma ideia do tamanho da empreitada, mencionamos o exemplo do Sergipe do Conde, um engenho do século XVII no Recôncavo baiano que realizava cerca de 203 “tarefas” — como era chamado o conjunto de afazeres desses estabelecimentos —, o que correspondia a uma média de trezentos dias de trabalho. Labutava-se dia e noite, em duas turmas, que lidavam com a moagem e o cozimento. O setor que cuidava da purga, secagem e encaixotamento precisava de um período apenas. No entanto, permanecia em atividade por dezoito horas ou mais. Além disso, aos domingos e feriados, na maioria dos engenhos os escravos trabalhavam na produção agrícola de alimentos para consumo próprio, ou na pesca em algum rio próximo, sem os quais sua dieta ficaria ainda mais reduzida e pobre.
Independente do setor, a jornada alcançava o limite da exaustão. Para ajudar a aliviar o cansaço e a manter o ritmo ensandecido, a labuta era acompanhada por cantos, que também uniam o grupo, melhoravam o moral e auxiliavam a vencer o jugo das horas ininterruptas de trabalho. Segundo o reverendo Wash, um clérigo que esteve no Brasil nessa época, os cativos acordavam às cinco da manhã, faziam suas orações e seguiam para o campo. Tomavam um pequeno desjejum às nove, e ao meio-dia almoçavam, lá mesmo, no campo. Depois pegavam novamente na enxada, e até o anoitecer. No período da safra, tudo se tornava mais corrido. Comentava-se que então os engenhos operavam por vinte horas seguidas, para quatro de descanso e limpeza do equipamento.
— Brasil by Lilia Moritz Schwarcz, Heloisa Murgel Starling (Page 74 - 76)
Miguel Medeiros quoted Brasil by Lilia Moritz Schwarcz
“Senzala” é um termo do quimbundo que significa “residência de serviçais em propriedades agrícolas”, ou “morada separada da casa principal”. Nas senzalas da cana residiam dezenas de escravos, que podiam chegar às centenas, com frequência presos pelos pés e braços, deitados em chão de terra e em péssimas condições de higiene — como ter numerosos escravos era sinal de prosperidade e abastança, o senhor preferia quantidade a qualidade. As circunstâncias variavam: por vezes os escravos eram alojados coletivamente; em outras situações foram achados registros de barracões distintos para homens e para mulheres, e em alguns casos até mesmo alojamentos para casais com filhos. No Nordeste, o mais normal era encontrar barracas contíguas, dispostas em filas e a certa distância da casa-grande. As senzalas eram trancadas à noite pelos feitores, a fim de evitar fugas e de estabelecer a disciplina, pois dessa maneira se determinava o horário de se recolher e de despertar. O repouso era breve e o local dos mais insalubres, uma vez que, sem luz nem janelas — para impedir evasões —, ali se vivia numa completa penumbra, além de faltar ar por conta da lotação. Em geral com paredes feitas de barro e telhado de sapé, essas construções eram bastante frágeis, e muitos viajantes comentaram sua aparência rudimentar. Pares opostos de uma mesma engenharia social, não havia casa-grande sem a senzala.
— Brasil by Lilia Moritz Schwarcz, Heloisa Murgel Starling (Page 70)
Miguel Medeiros quoted Brasil by Lilia Moritz Schwarcz
Aliás, para que o sistema funcionasse, e a roda do engenho girasse sem parar, o mais fundamental era a manutenção da mão de obra. Como vimos, a utilização de trabalhadores indígenas transformara-se num problema espinhoso já nos tempos do pau-brasil. Na era do açúcar, a situação se veria ainda mais agravada. As ordens religiosas, por exemplo, os jesuítas, desestimulavam o uso dessa mão de obra. Entre outros argumentos, alegava-se que os gentios eram “rebeldes”, indolentes, e não se fixavam na terra. Hoje sabemos que os ameríndios não eram mais rebeldes ou “pouco afeitos ao trabalho” do que qualquer ser humano submetido a um sistema escravista, que supõe a posse de um homem por outro e a violência como moeda corrente. O que existia, sim, era uma vontade religiosa e políticas diferentes, por parte da Igreja e dos colonizadores, quando se referia aos indígenas, por um lado, e aos africanos, por outro.
A briga entre colonos e a Igreja, no que dizia respeito à escravização indígena, foi uma constante, assim como muita mitologia cercou a questão do trabalho compulsório nativo. Do ponto de vista do discurso religioso, de teor moralizante, os indígenas foram, sobretudo, considerados “inapropriados” para o cultivo e o trabalho agrícola. Entretanto, aquilo que se chamava de “inadaptação” revelava concepções muito diferentes da vida e do cotidiano, as quais separavam europeus de gentios. Havia da parte destes desinteresse pelo excedente, uma concepção comunitária ou de reciprocidade em relação aos cuidados com a terra e o consumo — a produção de caráter doméstico. Em sua sociedade, o status não derivava da capacidade econômica, e essa visão diversa sobre a natureza do trabalho levou os portugueses a tomarem como “desinteresse”, ou “falta de aptidão”, o que na realidade correspondia a uma compreensão distinta do mundo e das necessidades básicas.
Além disso, doenças como a varíola (bexigas) e mesmo o conhecimento da terra acarretaram a fuga de muitos indígenas das áreas onde se dava o avanço dos colonizadores, com o objetivo de não se submeterem ao regime de trabalho forçado. De outro lado, havia as justificativas morais e cristãs ligadas à missão de doutrinação. Indígenas eram vistos como “rebanhos”; novos fiéis nas mãos da Reforma cristã, que nesse contexto ampliava suas fronteiras catequéticas.
No entanto, diferentemente do que se popularizou na historiografia — que ocorrera uma substituição do trabalho escravo dos índios pelo dos africanos —, hoje se sabe que, a despeito do discurso oficial, os indígenas foram escravizados por um longo período. Os paulistas, por exemplo, comportaram-se até o século XVIII como aprisionadores de índios, que ou vendiam ou utilizavam como mão de obra escrava nas fazendas agrícolas do planalto de Piratininga. Para tanto, não só assaltavam as missões jesuíticas estabelecidas na região do Paraguai, como a partir de 1640 praticamente limparam o sertão do Nordeste, onde então adentrava a nova colonização. Esse movimento ficou conhecido como Guerra dos Bárbaros, e se estendeu até a primeira metade do século XVIII. Os interesses dos paulistas e o discurso dos missionários jesuítas os colocaram em lados opostos, um cuidando de detratar o outro.
Por sua vez, a abertura para um mercado próspero, como o do açúcar, demandava saídas mais duradouras, estáveis e distantes de maiores controvérsias religiosas ou morais. Foi dessa maneira que se casaram os lucros da cana com aqueles provenientes do “tráfico de viventes”. De um lado, entre os domínios do Império português constavam feitorias em toda a costa da África. De outro, controlando as guerras internas no Brasil, os mercadores lusos fariam dos vencidos futuros cativos, recriando a escravidão que já vigia no continente africano.
Contudo, se hoje é possível constatar a existência de várias formas de escravidão naquele continente, a novidade seria agora a introdução de um sistema mercantil em que seres humanos viravam mercadoria e seu comércio resultava em vultosos lucros: primeiro para os negociantes africanos, depois para Portugal, e depois ainda para os próprios comerciantes brasileiros. A compra e a distribuição de escravos, quando eram realizadas por mercadores da metrópole, representavam, ademais, uma espécie de adiantamento de parte considerável da renda gerada pela colônia. Portugal garantia as duas pontas do mercado: o provimento de mão de obra e o monopólio da cana. Mas quase nada permanecia no Novo Mundo: nem a cana, nem o lucro por ela produzido.
— Brasil by Lilia Moritz Schwarcz, Heloisa Murgel Starling (Page 64 - 65)
Miguel Medeiros quoted Brasil by Lilia Moritz Schwarcz
Passados os primeiros tempos das notícias desencontradas e de tantos boatos, foi preciso garantir o achado e impedir os ataques estrangeiros. Tinha-se que povoar e colonizar a terra, mas também encontrar algum tipo de estímulo econômico. Além de papagaios e macacos, havia à disposição apenas uma “madeira de tingir”, conhecida no Oriente como boa especiaria, e que poderia alcançar altos preços na Europa. Assim, logo depois da viagem de Cabral outras expedições portuguesas alçaram velas para explorar o novo território e extrair a planta nativa.
O pau-brasil era originalmente chamado “ibirapitanga”, nome dado pelos índios Tupi da costa a essa árvore que dominava a larga faixa litorânea. Alcançando até quinze metros, a espécie apresentava troncos, galhos e vagens cobertos por espinhos. A madeira era muito utilizada na construção de móveis finos, e de seu interior extraía-se uma resina avermelhada, boa para o uso como corante de tecidos. Calcula-se que na época existiam 70 milhões de espécimes, logo dizimados pelo extrativismo feito à base do escambo e a partir do trabalho da população nativa. Já nos anos 900 d.C. o produto podia ser encontrado nos registros das Índias Orientais, em meio a uma série de plantas que possibilitavam a produção de um corante vermelho. Tanto a madeira como o corante eram conhecidos por diferentes nomes — “brecillis”, “bersil”, “brezil”, “brasil”, “brazily” —, sendo todos derivados do nome latino “brasilia”, cujo significado é “cor de brasa” ou “vermelho”. Na Europa, o primeiro registro do desembarque de uma “kerka de bersil” data de 1085, na França. Já Américo Vespúcio, na expedição de Gaspar de Lemos de 1501, anota a presença da rica madeira na embarcação.
E é em 1502 que tem início a exploração mais sistemática do pau-brasil por colonizadores portugueses, a qual, a despeito de ser atribuído à madeira valor inferior ao das mercadorias orientais, gerou grande interesse: por vias tortas voltávamos ao comércio de especiarias. A Coroa portuguesa logo declarou sua exploração um monopólio real, portanto a atividade só poderia ser desenvolvida mediante pagamento de imposto. A primeira concessão foi feita em 1501 a Fernando de Noronha, o qual recebeu também uma ilha, a ilha de São João, que mais tarde seria convertida em capitania e ganharia o nome do donatário. O trabalho era executado a partir da mão de obra indígena, por meio da prática de escambo. Os indígenas cortavam as árvores e as levavam até os navios portugueses ancorados à beira-mar, e em troca obtinham facas, canivetes, espelhos, pedaços de tecido e outras quinquilharias. Em 1511 dá-se a primeira exportação do pau-brasil para Portugal na nave Bretoa, que saiu da Bahia com destino a Lisboa. E lá se foram 5 mil toras de madeira, macacos, saguis, gatos, muitos papagaios e quarenta indígenas que atiçaram a curiosidade europeia.
Desde 1512, com a introdução do produto no mercado internacional, o termo “Brasil” passou a designar oficialmente a América portuguesa. Alguma flutuação na nomenclatura continuou a existir, muitas vezes combinando-se os nomes: Terra Sante Crusis de lo Brasil e del Portugal. Detrás do impasse terminológico residia, entretanto, uma disputa mais complexa, entre o poder secular e o espiritual. A cruz erguida naquele ermo local teria durado pouco e o demônio é que reinaria na nova terra. Diziam inconformados os cronistas cristãos que, à medida que aumentavam os carregamentos e o comércio, interesses materiais venciam por sobre o lenho onde morrera Jesus. João de Barros, por exemplo, lamentava que se desse mais importância “ao nome de um pau que tinge panos” do que ao “daquele pau que deu tintura a todos os sacramentos por que fomos salvos, pelo sangue de Cristo que nele foi derramado”.
Começava então uma disputa entre o sangue derramado de Cristo e o vermelho da tintura, que seria crescentemente associado ao diabo, sobretudo a partir da obra de Pero de Magalhães Gândavo, provavelmente um copista português da Torre do Tombo, autor de História da província de Santa Cruz. Gândavo defendia a volta do primeiro nome, afirmando que fora obra do demônio buscar extinguir a memória de Santa Cruz. Mas a querela ia ficando meio desgastada, pois a colonização se impunha e tentava aglutinar o sentido mercantil à tarefa religiosa, missionária e catequética. O diabo continuava presente, mas a luta era santa também. A ambiguidade se instituiu nessa contenda acerca do nome, a qual projetava outras inquietações que se abatiam sobre a nova colônia.
— Brasil by Lilia Moritz Schwarcz, Heloisa Murgel Starling (Page 31 - 33)
Miguel Medeiros quoted Brasil by Lilia Moritz Schwarcz
A essas alturas, os portugueses já iam se julgando donos e senhores dos destinos da nova terra, de seus limites e nomes. No entanto, a descoberta não alterou de imediato a rotina e os interesses dos lusitanos, que então só tinham olhos para o Oriente. Por isso, durante certo tempo, a vasta área ficou reservada para o futuro. Mas a concorrência internacional, ameaças estrangeiras e os questionamentos acerca do bilateral Tratado de Tordesilhas não permitiriam que a calmaria ali fosse eterna. Espanhóis já estavam na costa nordeste da América do Sul, e ingleses e franceses, contestando a divisão luso-espanhola do globo, logo invadiriam diferentes pontos do litoral. Francisco I da França, ao questionar o famoso acordo, deixou frase lapidar: “Gostaria de ver a cláusula do testamento de Adão que dividiu o mundo entre Portugal e Espanha e me excluiu da partilha”.
E já na década de 1530 ficou evidente para d. João III que apenas a soberania do papa legitimando o tratado não daria conta de afugentar os corsários franceses, os quais com frequência cada vez maior se estabeleciam nas possessões americanas. A saída foi criar várias frentes colonizadoras, basicamente independentes, que muitas vezes guardavam mais comunicação com a metrópole do que entre si. O sistema administrativo adotado foi o das capitanias hereditárias (ver imagem 14), que já era utilizado com bastante sucesso em domínios lusitanos como Cabo Verde e ilha da Madeira. A filosofia era simples: como a Coroa tinha recursos e pessoal limitados, delegou a tarefa de colonização e de exploração de vastas áreas a particulares, doando lotes de terra com posse hereditária.
A partir de 1534 a metrópole dividiu o Brasil entre catorze capitanias, quinze lotes e doze donatários. Como se desconhecia o interior do território, a saída foi imaginar faixas litorâneas paralelas desde a costa que adentrariam até o “sertão”. Todos os beneficiados pela medida eram egressos da pequena nobreza lusitana, sendo sete deles membros destacados nas campanhas na África e na Índia e quatro altos funcionários da corte. O sistema previa que o donatário tivesse o poder supremo e de jurisdição sobre sua capitania, podendo desenvolver a terra e escravizar indígenas. O isolamento era, porém, grande e danoso. Tanto que em 1572 a Coroa dividiu a administração em dois governos-gerais: o Governo do Norte, com capital em Salvador, era encarregado de cuidar da região que ia da capitania da Baía de Todos os Santos até a capitania do Maranhão. O Governo do Sul, com sede no Rio de Janeiro, ficava com o controle da região que ia de Ilhéus até o Sul. Criavam-se, pois, territórios dentro de territórios, regiões que mal se reconheciam como pertencentes a um mesmo espaço administrativo e político.
— Brasil by Lilia Moritz Schwarcz, Heloisa Murgel Starling (Page 30 - 31)
Miguel Medeiros quoted Brasil by Lilia Moritz Schwarcz
Essa nova gente capturou a curiosidade de Caminha: “A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem fazem mais caso de cobrir nem mostrar suas vergonhas, e estão acerca disso com tanta inocência como têm em mostrar o rosto”. O escrivão se espanta com suas “peles vermelhas e cabelos escorregadios”, e ademais com o fato de serem bonitos de corpo e alma. Começava com essa percepção certa ladainha de vida longa, que construiu a imagem de um “bom selvagem” brasileiro, muito retomada nos relatos franceses e, sobretudo, por Rousseau no século XVIII. Mas o que para ele seria apenas um modelo bom para criticar a Europa e a civilização — e nada tinha a ver com observação direta — aqui ganha um jeito de realidade. Esses eram bons gentios que podiam ser catequizados e assumir a boa-fé. Tanto que no domingo de Pascoela se levantou um altar de madeira para que uma missa fosse oficiada pelos padres e sacerdotes. Lá estava o capitão e a bandeira de Cristo, vinculando os feitos dos homens às façanhas divinas: “E pregou uma solene e proveitosa pregação, da história evangélica; e no fim tratou da nossa vinda, e do achamento desta terra, referindo-se à Cruz”.
Por fim, na sexta-feira, primeiro dia de maio, procurou-se rio acima o melhor lugar para arvorar uma cruz: que ela fosse vista de todos os lados. Feita a cruz e a divisa da monarquia, o padre frei Henrique rezou a missa que foi seguida, ainda segundo Caminha, por “cinquenta ou sessenta deles assentados todos de joelho”, junto com os demais membros da esquadra. Na hora do Evangelho, quando todos se ergueram com as mãos levantadas, o escrivão anotou bem o mesmo gesto dos nativos. Chegaram até a comungar, espantou-se: “Um deles, homem de cinquenta ou 55 anos, ficou ali com aqueles que ficaram […] E andando assim entre eles, falando-lhes, acenou com o dedo para o altar, e depois mostrou o dedo para o céu, como se lhes dissesse alguma coisa de bem; e nós assim o tomamos!”.
Evidentemente deslumbrado, o relato de Caminha inaugurava, também, outro mito recorrente. O da natureza pacífica, de uma conquista sem violência, uma comunhão que unificou a todos, num mesmo coração e religião. Estranho processo que definiria o Brasil como um país da ausência de conflito, como se os trópicos — por algum milagre ou dádiva — tivessem o poder de aliviar tensões e inibir guerras. Na Europa as lutas dividiam e sangravam nações; já no Novo Mundo, se guerras existiam, elas eram, segundo os relatos europeus, só internas. O encontro havia de ser sem igual e entre iguais, por mais que o tempo mostrasse o oposto: genocídio de um lado, conquista de outro.
— Brasil by Lilia Moritz Schwarcz, Heloisa Murgel Starling (Page 29 - 30)
Miguel Medeiros quoted Brasil by Lilia Moritz Schwarcz
Numa viagem sem incidentes a comida embarcada mal satisfazia as necessidades básicas dos marinheiros. O cenário piorava muito diante de calmarias ou de imperícias dos pilotos, que provocavam alongamentos indesejáveis e inesperados, ocasionando uma carestia geral no navio. O principal alimento era o biscoito seco, cuja história, aliás, confunde-se com a da navegação. O vinho era também presença obrigatória, sendo a ração diária calculada em uma cana (um quarto de litro), na mesma proporção que a água potável, usada para beber e cozinhar. Esta era, porém, acumulada em tonéis nem sempre apropriados, que estimulavam a proliferação de bactérias, causando infecções e diarreias na tripulação. A carne era controlada e distribuída a cada dois dias. Na ausência dela oferecia-se queijo ou peixe e arroz, quando disponível. Outro problema frequente era a armazenagem. Como o grosso dos alimentos embarcava junto com a tripulação, no início da viagem era comum ocorrerem infestações de ratos, baratas e besouros, que disputavam a comida com igual voracidade. Não havia banheiros nesses navios — pequenos assentos eram pendurados sobre a amurada, o que deixava um fedor permanente no convés.
Com tantos problemas de higiene, as doenças garantiam presença durante as travessias. Escorbuto — mais tarde também chamado de mal de luanda ou mal de gengivas —, provocado pela carência de vitamina C, e enfermidades pleuropulmonares eram as mais frequentes. Em vista das mortes praticamente diárias, a única saída era estender os cadáveres no convés, até que um religioso fizesse uma breve oração e por fim os corpos fossem atirados na água.
No caminho desses mares desconhecidos também não faltaram cenas de violência, roubos e toda sorte de corrupção. Quanto maior a incerteza, maior o número de crimes, agressões e atritos. Para lidar com tamanha insegurança, restavam poucas diversões: jogos de carta, teatros coletivos, a leitura de livros religiosos e profanos, e procissões em torno do convés.
— Brasil by Lilia Moritz Schwarcz, Heloisa Murgel Starling (Page 26)
Miguel Medeiros quoted Brasil by Lilia Moritz Schwarcz
Nesse momento, também a Espanha passava por um processo de expansão colonial. O reino espanhol, que se unificara como Estado Nacional em 1492, lançara-se ao mar na busca de uma nova rota para o Oriente através do Ocidente. E para evitar outras guerras, numa Europa já habituada às batalhas envolvendo nações em litígio, logo em 7 de junho de 1494 era assinado um acordo — o Tratado de Tordesilhas — que objetivava dividir as terras “descobertas e por descobrir” fora do Estado por ambas as Coroas. O acordo representava o resultado imediato da contestação portuguesa às pretensões da Coroa espanhola, que um ano e meio antes chegara ao que se acreditava serem as Índias mas que se tratava de um Novo Mundo, reclamando-o oficialmente a Isabel, a Católica. Nem se sabia onde esse mundo ia dar, mas ele já tinha dono e certificado de origem.
O Tratado de Tordesilhas teve um antecedente: a bula Inter Caetera, assinada pelo papa Alexandre VI em 4 de maio de 1493, que dividiu as novas terras do globo entre Portugal e Espanha. Na prática, as terras situadas até cem léguas a oeste, a partir das ilhas de Cabo Verde, seriam de Portugal, e as que ficassem além dessa linha, da Espanha. Por receio de perder possíveis conquistas, uma revisão foi proposta por Portugal, que conseguiu mudar os termos da bula. O Tratado de Tordesilhas, assinado pelas duas Coroas, definiu como linha de demarcação o meridiano que ficava 370 léguas a oeste de uma ilha não especificada do arquipélago de Cabo Verde, então pertencente aos portugueses. Dessa forma, a linha imaginária encontrava-se a meio caminho entre o arquipélago e as ilhas das Caraíbas, descobertas por Colombo. Legislava o tratado, ainda, que os territórios a leste desse meridiano pertenceriam a Portugal e os a oeste à Espanha. O tratado seria ratificado pela Espanha em 2 de junho e por Portugal em 5 de setembro de 1494, como se o mundo — real ou tantas vezes imaginado — pudesse ser dividido em dois, em duas metades, e sem maiores contestações.
— Brasil by Lilia Moritz Schwarcz, Heloisa Murgel Starling (Page 24)
Miguel Medeiros quoted Brasil by Lilia Moritz Schwarcz
Desde o princípio o impulso para o expansionismo em Portugal seria pautado por interesses comerciais, militares e evangelizadores, equilibrados em boas doses. Mas, entre os séculos XIV e XV, o que mais animou os portugueses a procurar por novas rotas foi o mercado de especiarias provindas do Oriente. O termo “especiarias” designava uma série de produtos de origem vegetal, de aroma ou sabor acentuado, utilizados como tempero e na conservação de alimentos, mas também como óleos, unguentos, incensos, perfumes ou medicamentos. O consumo foi particularmente desenvolvido a partir das Cruzadas, sendo as espécies tropicais — pimenta-do-reino, cravo, canela e noz-moscada — as mais estimadas no fim do século XIV. Nativas da Ásia, tais especiarias eram então muito valorizadas e seu preço subia a olhos vistos. Acabaram virando moeda, e se tornando parte de dotes de nobres e princesas, de heranças, reservas de capitais e divisas do reino. Podiam ainda ser usadas em escambos — para pagar serviços, fazer acordos, selar obrigações religiosas ou se redimir de impostos —, bem como no suborno de altos funcionários.
Com a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos em 29 de maio de 1453, porém, esse rico comércio encontrou obstáculos — as rotas caíram sob controle turco e ficaram bloqueadas para os mercadores cristãos. Foi para contornar esse problema que Portugal e Espanha passaram a organizar expedições de exploração, visando encontrar rotas alternativas por terra e por mar. Era esse o objetivo de Portugal quando investiu numa nova via, procurando garantir o monopólio final do comércio. Optou-se por um caminho que implicava uma inédita e arriscada manobra: circundar o desconhecido continente africano, cujo percurso completo levou mais de um século para ser realizado. Mas a demora virou proveito, e Portugal instalou “feitorias” no litoral africano, vale dizer, estabeleceu pontos estratégicos para uma colonização presente e futura.
— Brasil by Lilia Moritz Schwarcz, Heloisa Murgel Starling (Page 22 - 23)
Miguel Medeiros quoted Brasil by Lilia Moritz Schwarcz
Foi o próprio navegador genovês Cristóvão Colombo, responsável por comandar a frota que primeiro alcançou o continente americano em 12 de outubro de 1492, sob as ordens dos reis católicos da Espanha — Fernando e Isabel —, quem cunhou o nome “canibal”. O termo tem origem no idioma arawan — língua falada por tribos indígenas da América do Sul, povos caraíbas antilhanos, cuja derivação espanhola “caribal” (do Caribe) logo foi associada a práticas reportadas por viajantes europeus, que se referiam, preocupados, a costumes antropofágicos locais. O nome também foi vinculado a can (cão), e a Cam, personagem bíblico mencionado no livro de Gênesis. Filho mais novo de Noé, Cam, Canaã, rira da embriaguez do pai desacordado e por isso fora amaldiçoado e condenado a ser “servo dos servos”. Assim, pavimentava-se o caminho religioso para as futuras justificativas da escravização não só dos índios como dos negros africanos, ambos considerados descendentes da maldição de Cam.
No diário de sua primeira viagem ao Caribe (realizada entre 1492 e 1493) o explorador menciona, entre curioso e indignado, que os nativos das ilhas tinham o costume de comer carne humana, e assim os chama de “caribes” ou “canibes”. O nome virou adjetivo na segunda viagem de Colombo às Antilhas, que teria ocorrido entre 1493 e 1496, e a difusão da prática do canibalismo nas Américas ajudou a consolidar um novo propósito: o de escravizar os nativos. Na carta que escreveu à Coroa, Colombo asseverava que eles eram preguiçosos, andavam nus, eram carentes de vergonha, pintavam o corpo para a guerra e usavam apenas tatuagens, braceletes e colares para cobrir as intimidades. O argumento era que os canibais estavam longe dos valores da humanidade ocidental mas poderiam ser úteis como bons escravos.
— Brasil by Lilia Moritz Schwarcz, Heloisa Murgel Starling (Page 21 - 22)
Miguel Medeiros wants to read Brasil: Nunca Mais by Paulo Evaristo Arns
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