Miguel Medeiros quoted Brasil by Lilia Moritz Schwarcz
Aliás, para que o sistema funcionasse, e a roda do engenho girasse sem parar, o mais fundamental era a manutenção da mão de obra. Como vimos, a utilização de trabalhadores indígenas transformara-se num problema espinhoso já nos tempos do pau-brasil. Na era do açúcar, a situação se veria ainda mais agravada. As ordens religiosas, por exemplo, os jesuítas, desestimulavam o uso dessa mão de obra. Entre outros argumentos, alegava-se que os gentios eram “rebeldes”, indolentes, e não se fixavam na terra. Hoje sabemos que os ameríndios não eram mais rebeldes ou “pouco afeitos ao trabalho” do que qualquer ser humano submetido a um sistema escravista, que supõe a posse de um homem por outro e a violência como moeda corrente. O que existia, sim, era uma vontade religiosa e políticas diferentes, por parte da Igreja e dos colonizadores, quando se referia aos indígenas, por um lado, e aos africanos, por outro.
A briga entre colonos e a Igreja, no que dizia respeito à escravização indígena, foi uma constante, assim como muita mitologia cercou a questão do trabalho compulsório nativo. Do ponto de vista do discurso religioso, de teor moralizante, os indígenas foram, sobretudo, considerados “inapropriados” para o cultivo e o trabalho agrícola. Entretanto, aquilo que se chamava de “inadaptação” revelava concepções muito diferentes da vida e do cotidiano, as quais separavam europeus de gentios. Havia da parte destes desinteresse pelo excedente, uma concepção comunitária ou de reciprocidade em relação aos cuidados com a terra e o consumo — a produção de caráter doméstico. Em sua sociedade, o status não derivava da capacidade econômica, e essa visão diversa sobre a natureza do trabalho levou os portugueses a tomarem como “desinteresse”, ou “falta de aptidão”, o que na realidade correspondia a uma compreensão distinta do mundo e das necessidades básicas.
Além disso, doenças como a varíola (bexigas) e mesmo o conhecimento da terra acarretaram a fuga de muitos indígenas das áreas onde se dava o avanço dos colonizadores, com o objetivo de não se submeterem ao regime de trabalho forçado. De outro lado, havia as justificativas morais e cristãs ligadas à missão de doutrinação. Indígenas eram vistos como “rebanhos”; novos fiéis nas mãos da Reforma cristã, que nesse contexto ampliava suas fronteiras catequéticas.
No entanto, diferentemente do que se popularizou na historiografia — que ocorrera uma substituição do trabalho escravo dos índios pelo dos africanos —, hoje se sabe que, a despeito do discurso oficial, os indígenas foram escravizados por um longo período. Os paulistas, por exemplo, comportaram-se até o século XVIII como aprisionadores de índios, que ou vendiam ou utilizavam como mão de obra escrava nas fazendas agrícolas do planalto de Piratininga. Para tanto, não só assaltavam as missões jesuíticas estabelecidas na região do Paraguai, como a partir de 1640 praticamente limparam o sertão do Nordeste, onde então adentrava a nova colonização. Esse movimento ficou conhecido como Guerra dos Bárbaros, e se estendeu até a primeira metade do século XVIII. Os interesses dos paulistas e o discurso dos missionários jesuítas os colocaram em lados opostos, um cuidando de detratar o outro.
Por sua vez, a abertura para um mercado próspero, como o do açúcar, demandava saídas mais duradouras, estáveis e distantes de maiores controvérsias religiosas ou morais. Foi dessa maneira que se casaram os lucros da cana com aqueles provenientes do “tráfico de viventes”. De um lado, entre os domínios do Império português constavam feitorias em toda a costa da África. De outro, controlando as guerras internas no Brasil, os mercadores lusos fariam dos vencidos futuros cativos, recriando a escravidão que já vigia no continente africano.
Contudo, se hoje é possível constatar a existência de várias formas de escravidão naquele continente, a novidade seria agora a introdução de um sistema mercantil em que seres humanos viravam mercadoria e seu comércio resultava em vultosos lucros: primeiro para os negociantes africanos, depois para Portugal, e depois ainda para os próprios comerciantes brasileiros. A compra e a distribuição de escravos, quando eram realizadas por mercadores da metrópole, representavam, ademais, uma espécie de adiantamento de parte considerável da renda gerada pela colônia. Portugal garantia as duas pontas do mercado: o provimento de mão de obra e o monopólio da cana. Mas quase nada permanecia no Novo Mundo: nem a cana, nem o lucro por ela produzido.
— Brasil by Lilia Moritz Schwarcz, Heloisa Murgel Starling (Page 64 - 65)