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Frei Betto: Batismo de sangue (Paperback, Português language, Rocco) No rating

Lançado originalmente em 1982, Batismo de sangue ganhou o prêmio Jabuti na categoria de melhor …

É através das dissidências que a História acerta os seus passos. Há um momento em que as possibilidades de uma proposta – religiosa ou política – parecem esgotar-se sob o peso dos anos, da rigidez de seus princípios, da inflexibilidade de sua disciplina, da intransigência de seus dogmas, da prepotência de seus líderes. Como a fonte seca à beira da estrada, incapaz de saciar a sede dos peregrinos, a proposta vê-se rejeitada por seus discípulos dispostos a caminhar sem a tutela que lhes atrasa o passo. Foi o que ocorreu na Palestina do século I, onde o judaísmo, atravancado pelo fundamentalismo moralista dos fariseus e pelo elitismo exclusivista dos saduceus, cindiu-se numa nova, prodigiosa e revolucionária “seita”, cujos membros anunciavam a ressurreição de um jovem judeu crucificado pelos romanos, Jesus de Nazaré. Toda a história da Igreja é como uma teia entrelaçada por experiências místicas e disputas ideológicas, influências culturais e manobras políticas, heresias doutrinárias e inovações pastorais. O centro dessa teia, a fé no Senhor, permanece intangível. Mas sua extensão em intrincados labirintos é, de um lado, sinal de diversidade dos dons do Espírito e, de outro, obra dessa incessante busca que faz do ser humano, em seus anelos de perfeição, o aprendiz de Deus. A dissidência de Paulo, o Apóstolo, quebrou o caráter judaizante da primitiva Igreja de Pedro, estendendo-a, como boa-nova, aos pagãos, até os limites do Império Romano. Entretanto, operou-se entre os cristãos uma experiência que, embora carregada de exceções, constituiu a chave de sua unidade básica através dos séculos: a dissidência não significa, necessariamente, ruptura. E é justamente essa capacidade de uma instituição suportar a emergência do novo e assumir a gravidez que prenuncia, ao mesmo tempo, a sua transformação e o seu futuro, que dá a ela perenidade. Se a Igreja dos papas revestidos de todo poder não suportasse o desafio evangélico da presença incômoda de um Francisco de Assis, teria sido tragada pelos séculos, como as águas do mar acobertam a embarcação que afunda sob o peso de sua excessiva carga. Lutero sabia disso e fez o que pôde para prosseguir na luta interna. Mas a formação dos Estados europeus, os interesses dos príncipes em uma fonte alternativa de sacralização do poder – para escaparem ao monolitismo romano –, o jogo econômico de um Renascimento que via agonizar a Idade Média e expandir o mercantilismo que, em breve, daria ao trabalho meios industriais de produção, inaugurando o capitalismo, fizeram com que a divergência de Lutero adquirisse foro de ruptura e inovação. Desde então, a luta interna se enfraqueceu nas Igrejas protestantes, multiplicando as denominações segundo o número de dissidências. Essa tensão entre a ortodoxia e a crítica que a desnuda, tornando-a vulnerável, existe da mesma forma na história dos partidos políticos, mormente entre as tendências de esquerda. Embora feita de dissidências e de discordâncias, a política, como a religião, não as suporta e, se não pode abatê-las pela mão de ferro do poder, recorre à difamação, à discriminação e às explicações pretensamente psicológicas que reduzem o adversário a um doente mental. Mesmo nas sociedades burguesas que ostentam o título de democráticas, a discordância não passa de um acordo de cavalheiros para encobrir reais antagonismos. A lei que protege o patrão oprime o empregado; o direito reconhecido do médico é desprezado no paciente; o aparelho jurídico que não confunde o réu de colarinho e gravata com seu gesto criminoso é o mesmo que reduz a existência do pobre ao momento infeliz de transgressão da lei. A discordância é admitida, sobretudo, enquanto não ameaça passar o capital às mãos de quem trabalha. A árvore genealógica de partidos e movimentos de esquerda é rica em ramificações. De Lênin a Marighella, todos apostataram aos olhos de seus antigos camaradas. Quando chega ao poder, o “herege” é redimido pela vitória e absolvido pelos que o julgavam equivocado. Quando se é abatido em plena luta, como a ave em seu voo, a morte é o atestado de que necessitavam os “ortodoxos” à sua razão indelével, aferrada a conceitos e às normas que sacralizam um partido, fazendo-o transcender o real. Entretanto, as novas gerações veem na dissidência a conquista da liberdade, ainda que, de fato, signifique recuo ou desvio. Daí a facilidade com que os mais jovens aderem às propostas do momento, que parecem brotar, como por encanto, da própria conjuntura que lhes é contemporânea. Contudo, além da torrente de palavras que escorre dos estuários de cada posição, na disputa inútil de uma certeza que o raciocínio não comporta, resta a prática como critério da verdade. Ela e o tempo dirão quem está certo e quem está errado. Indiferentes ao nosso maniqueísmo, é possível que a prática e o tempo sejam menos intolerantes e apontem os erros e os acertos de ambos os pratos da balança. Artífices reais da História, as classes populares seguirão sempre como o fiel da balança, pendendo para um dos lados e confirmando as teorias que o inclinam na direção do futuro. Nesse movimento dialético – da árvore genealógica que muitas vezes se abre na infinidade de galhos e, por outras, se une em torno do tronco – é que a história das tendências políticas de esquerda tece as suas razões, que, contudo, só se fazem realidade quando deitam raízes na alma, na esperança e no anseio irreprimível de liberdade das camadas oprimidas.

Batismo de sangue by  (Page 42 - 45)