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Frei Betto: Batismo de sangue (Paperback, Português language, Rocco) No rating

Lançado originalmente em 1982, Batismo de sangue ganhou o prêmio Jabuti na categoria de melhor …

Viver na clandestinidade é como tornar-se invisível para os outros. As pessoas nos veem, mas não conhecem, e os que conhecem não podem nos encontrar senão por acaso. Como toda situação de completo despojamento, faz-nos sentir mais livres. Trocar de nome dá sensação de vida nova – só então compreendo por que os institutos religiosos adotavam esse costume ao receber seus noviços. O meu era “Vitor” e exigia-me estar sempre atento, para não pensar que chamavam outra pessoa. “Vídor, você querr mas arroz?”, perguntava Mrs. A., e, meio perplexo, eu constatava que era comigo mesmo. Todo tempo de espera é longo, muito longo. Não há muito a fazer quando só resta aguardar uma saída. É como estar dentro de um imenso cilindro, no qual há centenas de portas desenhadas e semelhantes à única verdadeira. Não é nada fácil encontrá-la, e abri-la depende mais de quem está do lado de fora. Não obstante, na cabeça dos amigos, estamos mergulhados em plena ação, e eles são capazes de nos identificar por trás de cada notícia de jornal que brilha, rápida, como um palito de fósforo aceso em meio à escuridão. De fato, os dias custam a passar, o relógio parece tomado por uma preguiça crônica, que se arrasta ao ritmo aritmético do calendário. Somos obrigados a violentar nossos hábitos e costumes. O corpo deve adaptar-se à mobilidade restrita, controlada, temerária, enquanto a mente vagueia pelo medo, povoa-se de recordações e multiplica perguntas que não têm respostas imediatas. No quarto de empregada em que eu dormia ainda era possível ocupar-me o dia todo com leituras e ouvir rádio. Pior situação viviam outros companheiros que, morando em pensões, eram forçados a fingir um ritmo normal de vida: levantavam cedo e perambulavam o dia todo pela cidade, à espera da hora de regressar ao quarto, como se retornassem do trabalho. Por vezes eu saía de casa para encontrar pessoas que não deveriam conhecer meu refúgio, e através das quais eu mantinha contato com meu próprio universo. A imensidão de São Paulo oferece muitas alternativas para quem vive na clandestinidade. O diabo é que a cabeça da gente é pequena, e a imaginação, medrosa  Achava todo lugar suspeito. Mal conseguia dialogar. Trocava as informações necessárias e, dominado pelo nervosismo, acreditava que a viatura policial vislumbrada no horizonte vinha exatamente em minha direção. Não seria um policial do DEOPS aquele pipoqueiro da esquina? Esses homens que descarregam bujões de gás, exatamente nesta casa ao lado, não são militares da Oban? Ora, os heróis nunca morrem hoje. Chegam a acreditar que são sempre mais espertos que a repressão. Habituados ao risco, julgam-se invisíveis. Vão a lugares onde jamais admitiriam encontrar um companheiro, como certos cinemas e restaurantes. Creem que, se forem presos, não será nunca hoje, talvez amanhã. Por isso, naqueles idos, várias vezes cruzei com Marighella e outros dirigentes revolucionários na churrascaria A Toca, que ficava na esquina das ruas Turiassu e Cardoso de Almeida, em Perdizes. O proprietário, Jacinto Pasqualini, suava frio, ao calor das brasas que assavam as carnes, quando coincidiam, no mesmo espaço, guerrilheiros e policiais. Tratava de separá-los em mesas distantes e de avisar-nos. É possível que aqueles investigadores e delegados jamais imaginassem que naquela roda alegre de chope, em torno de saborosas picanhas, estavam alguns dos mais procurados “terroristas” do país, como Aloísio Nunes Ferreira, Antônio Carlos Madeira, Rolando Fratti, Agonaldo Pacheco e Carlos Marighella, cuja peruca improvisada parecia chamar mais atenção do que ele próprio. Foi naquele período que conheci melhor meus anjos da guarda, os amigos capazes de todo e qualquer sacrifício em meu favor. Só então a vida mostrou-me o que significa esta palavra de Jesus no capítulo 10 de Marcos, versículos 28 a 30: “Em verdade vos digo que não há quem tenha deixado casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos ou terras por minha causa ou por causa do Evangelho, sem que receba cem vezes mais, agora, neste tempo, casas, irmãos e irmãs, mãe e filhos e terras, com perseguições.” Entre perseguições, seria a tradução preferível. Quantas pessoas dispostas a me abrigar em suas casas por simples indicação de um amigo, sem conhecimento prévio! Quantos arriscavam empregos, e a própria pele, na vontade de ajudar e apoiar! (Note-se que Jesus não promete “pais”. Para ele, só há um Pai em quem confiar.) A cada vez que encontrava esses “irmãos e irmãs”, uma intensa alegria se apossava de mim. Entre olhares que diziam mais que palavras, trocávamos notícias, impressões, esperanças. A separação era sofrida, embora camuflada sob o sentimento do dever. Mas quem de nós não sonha com um futuro no qual desfrutaremos incessantemente das amizades que amamos?

Batismo de sangue by  (Page 85 - 87)