Do mesmo modo que a servidão substituiu a escravidão, o salariado substituiu a servidão. A Revolução de 1789 queimou os velhos títulos de propriedade feudais, os camponeses enforcaram alguns senhores, os burgueses guilhotinaram alguns outros, a propriedade mudou de mãos, a supremacia da propriedade feudal passou às mãos do capital, o assalariado substituiu o servo; nominativamente, o trabalhador tornou-se livre, tudo o que há de mais livre! Completamente liberto dos laços que o prendiam à terra, pode transportar-se de um país a outro, se tem os meios de pagar às companhias ferroviárias — que cobram uma tarifa enorme no transporte de passageiros — ou se tem do que se alimentar durante o tempo que durar sua viagem, se resolver fazê-la a pé. Tem o direito de residir em qualquer apartamento, desde que pague ao proprietário do imóvel; tem o direito de trabalhar em qualquer lugar, sob a condição de que o industrial, que açambarcou as ferramentas de trabalho do ramo industrial que ele escolheu, queira empregá-lo; não está obrigado a nenhuma servidão em relação àqueles que o empregam; sua mulher já não é obrigada a suportar os caprichos do senhor; a própria lei o proclama igual ao bilionário; mais ainda, pode tomar parte na elaboração das leis — pelo direito de escolher aqueles que devem produzi-las — tanto quanto os privilegiados; não é esse, portanto, o ideal de seus sonhos? O que lhe falta, então, para estar no ápice de suas aspirações? Deve-se crer que não, pois se reconhece que o salariado é tão-somente a transformação atenuada da escravidão e pede-se sua abolição. É que todos esses direitos são apenas nominativos e que, para servir-se deles, é preciso possuir o poder político que permite viver à custa daqueles que vos suportam, ou possuir esse motor universal, o dinheiro, que liberta de tudo. O capitalista não pode mais matar o trabalhador mas pode deixá-lo morrer de fome ao não empregá-lo; ele não pode mais tomar à força a operária que lhe resiste, mas pode muito bem corrompê-la fazendo brilhar diante de seus olhos o luxo, o bem-estar que um salário incerto não pode lhe dar.
— O Princípio anarquista e outros ensaios by Peter Kropotkin