Miguel Medeiros quoted O tomismo by Etienne Gilson
A primeira noção a definir é a de revelado. Para alcançarmos sua nature-za, é, com efeito, formalissime (de maneira maximamente formal) que con-vém encará-la. Tal como o concebe Santo Tomás, o revelatum corresponde unicamente aquilo cuja essência é a de ser revelado, porque ele não pode tor-nar-se cognoscivel para nós senão por revelação. Não nos engajemos, portan-to, para definir o revelatum, em uma pesquisa empírica sobre o que Deus, de fato, julgou bom revelar aos humanos. O que constitui o revelado como tal não é o fato de que foi revelado, mas de que exige ser revelado para ser conhe-cido. Assim concebido, o revelado é todo conhecimento sobre Deus que ultra-passa o poder da razão humana. É possível, aliás, que Deus revele-nos conhe-cimentos acessíveis à razão, mas, precisamente porque não são inacessíveis à luz natural do entendimento, esses conhecimentos não concernem ao "reve-lado". De fato, Deus pode revelá-los, mas, de direito, não pertence à essência deles não ser cognosciveis senão por via de revelação.
Assim, Deus pode ter considerado bom revelar conhecimentos que não concernem ao revelado. Para definir a classe de conhecimentos que, de fato, são assim dispostos ao alcance de nossa razão, requer-se uma nova noção, mas bem concreta dessa vez e flexível o suficiente para abraçar uma plurali-dade de fatos heterogéneos. Sem dúvida, essa noção terá, ela também, sua unidade. Se ela não fosse una, simplesmente não seria. No lugar da unidade estrita de uma essência, teremos o que a imita melhor, a unidade de uma or-dem. Tal é precisamente a noção de revelabile, o revelável, que devemos ago-ra definir.
Ora, não chegaremos a essa noção senão com a condição de, ao contrá-rio, proceder empiricamente, com base nos fatos que ela deve unificar. Esses fatos, aos quais nossa nova noção deve vestir sob medida, são todos os que compõem esse evento extremamente complexo que se nomeia Revelação. Trata-se sem dúvida aqui de um evento; portanto, de um fato de ordem exis-tencial que se refere mais à faculdade de julgar do que à definição propria-mente dita. Cernir a priori seus contornos, por meio de um conceito abstrato seria algo impossível, mas podemos construir progressivamente sua noção com base em julgamentos de existência sobre os dados de fato que se trata de unificar. Com efeito, a Revelação refere-se essencialmente ao revelado, mas inclui muitas outras coisas. Porque a Revelação as inclui, elas concernem a ela em algum grau. Tomadas em conjunto, elas formarão, portanto, uma classe de fatos sob a jurisdição da mesma noção, cuja unidade será constituída pela relação comum delas com o ato divino de revelar.
Tomada em si mesma, uma revelação é um ato que, como qualquer ato, visa certo fim. No caso da Revelação, trata-se de tornar possível a salvação do ser humano. Para este, a salvação consiste no fim a ser alcançado. Ele não pode alcançá-lo sem conhecê-lo. Ora, esse fim é Deus, isto é, um objeto que ultrapassa infinitamente o conhecimento natural. Para que o ser humano pudesse obter sua salvação, era preciso, então, que Deus lhe revelasse conhecimentos que ultrapassem os limites da razão. O conjunto desses conheci-mentos é o que se nomeia ciência sagrada, assim nomeada do modo como falamos de história sagrada: sacra doctrina (ensino sagrado), sacra scientia (ciência sagrada) ou theologia (teologia). O problema, para nós, está em saber qual é o conteúdo dessa ciência.
Da maneira como Santo Tomás a concebe, a Revelação apresenta-se como uma operação de certo modo hierárquica, tomando-se esse termo no sentido que lhe havia dado Dionisio, o Pseudoareopagita: a verdade sobrenatural não chega a nós senão como um rio que desceria, por assim dizer, em cascatas, partindo de Deus, que é sua fonte, descendo aos anjos, que a recebem por primeiro segundo a ordem das hierarquias angélicas, e chegando aos humanos, quando ela atinge inicialmente os apóstolos e os profetas, derramando-se em seguida na multidão daqueles que a aceitam pela fé. A ciên-cia sagrada ou teologia tem, então, por fundamento, a fé em uma revelação feita por Deus àqueles que nomeamos os apóstolos e os profetas. Essa revelação confere-lhes autoridade divina, portanto inatacável, e a teologia repousa sobre nossa fé na autoridade deles.
— O tomismo by Etienne Gilson (Page 17 - 18)