Miguel Medeiros quoted O tomismo by Etienne Gilson
É notável que Platão sempre responda à questão O que é ser? pela descrição de uma certa maneira de ser. Para ele, só há ser lá onde há possibilidade de inteligibilidade Como poderíamos dizer que uma coisa é se não pudéssemos dizer o que ela é? Ora, para que ela seja alguma coisa, é preciso que ela continue a sê-lo. Admitir que uma coisa muda é constatar que o que ela era não é mais e que ela vai tornar-se alguma coisa que ela ainda não é. Como conhecer como sendo aquilo que não cessa de tornar-se outra coisa? As três noções de ser, de inteligibilidade e de imutabilidade são, pois, intimamente ligadas no pensamento de Platão. Só merece o nome ser aquilo que, por continuar sempre o mesmo, é objeto de possível intelecção. "O que é que sempre é e nunca nasce? E o que é que sempre nasce e nunca é?", pergunta Platão no Timeu (27d). Esse mesmo principio permite compreender a resposta de Platão à questão posta pelo Sofista: "O que é ser?". O que permanece constante, nos meandros de sua dialética, é que as expressões einai (ser) e einai ti, einai ti tôn óönton (ser alguma coisa, ser um dos entes) são equivalentes no espirito de Platão. Donde a dificuldade de traduzir o termo ousia. Hesita-se, com razão, em traduzi-lo por essência ou por substância, pois nenhum desses termos faria sentir sua força e medir seu alcance: ousia é aquilo que possui verdadeiramente o ser, porque permanece sempre o que é. Aqui, como alhures, o tò ón platônico define-se por oposição ao to gignómenon, o ser seria o contrário do devir.
Num pensamento em que o ser reduz-se assim à estabilidade da essência, como determinar o que é, para distingui-lo do que não é? Eis aí, responde finalmente o Sofista, o trabalho do dialético". Munido de seu método e olhar fixo no inteligível, ele poderá dizer de cada essência "o que ela é" e, por conseguinte, "que ela é", mas também "o que ela não é e, consequentemente, "que ela não é. A oposição empírica da existência ao nada tende, aqui, a reduzir-se à distinção dialética do mesmo e do outro. Sempre que o dialético define uma essência, ele põe simultaneamente que ela é o que ela é e que ela não é aquilo que é diferente do que ela é. Nessa perspectiva da essência, as noções de ser e de não ser despem-se, assim, de toda conotação existencial. Como diz o próprio Platão no Sofista: "parece que, quando enunciamos o não ser, isso não equivale a enunciar algo contrário ao ser, mas somente algo outro. O ser e o não ser estão tão longe de opor-se em uma ontologia essencial (tanto quanto ocorre rigorosamente com a existência e o nada em uma ontologia existencial) que eles se reclamam e implicam-se mutuamente. Uma essência só pode ser estabelecida uma vez como ser, pois ela é ela mesma, porém, sendo ela uma vez, pode-se dizer que há um número indefinido de vezes que ela não é, pois ela é outra com relação a todas as outras essências. Se só uma vez a essência mesmo é ser (contra as inúmeras vezes que ela é outro e não ser), então, o ser está tão longe de excluir o não ser que ele não pode estabelecer-se uma só vez sem estabelecer o não ser uma infinidade de vezes. Podemos es-tar seguros de encontrar-nos na tradição do platonismo autêntico quando as noções de existência e de nada são reduzidas às noções puramente essenciais de mesmo e de outro, de eodem et diverso
Tal é precisamente a noção de ser que, graças a Platão, foi herdada por Santo Agostinho. Nele, como em Platão, a oposição existencial radical do ser ao nada apaga-se diante da distinção entre o que "é verdadeiramente e o que "não é verdadeiramente" O ser adquire, então, esse valor variável que ele tem sempre numa ontologia das essências. Em sentido pleno, ele se define como o absolutamente imutável, o mesmo e o repouso, por oposição a um não ser concebido como o mutável, o outro e o movimento puro. Entre o imutável puro e a duração pura escalonam-se todos os entes dos quais não poderíamos dizer nem que eles não são absolutamente (pois participam de alguma essência estável) nem que eles "são verdadeiramente" (pois nascem e perecem). Ora, nascer é passar do não ser ao ser, como perecer é passar do ser ao não ser, por toda parte onde há não ser, igualmente falta ser¹ Situamo-nos, pois, claramente, no plano do vere esse (ser verdadeiramente), no qual o ser é um valor variável que se mede pela estabilidade da essência. Se Deus, ai, deve ser estabelecido como princípio de tudo, é porque ele é no grau supremo, vis to ser supremamente imutável"; inversamente, tudo o que é supremamente imutável é em grau supremo e é Deus. A verdade é assim, ela que não poderia mudar, pois é necessária e eterna. Avançamos, então, no ser ao mesmo tempo em que avançamos no imutável e alcançamos simultaneamente em Deus o grau supremo de ambos. Só Deus é o ser supremo, porque, sendo a totalidade estável do ser, não pode mudar nem para perder nem para ganhar algo: "ele é sumamente, pois nada perde nem nada ganha por nenhuma mutabilidade"
— O tomismo by Etienne Gilson (Page 54 - 55)