Miguel Medeiros quoted Como cultivar uma vida de leitura by C. S. Lewis (Coleção Fundamentos)
Há duas formas de usufruir do passado, do mesmo modo como há duas maneiras de usufruir de um país estrangeiro. Um homem leva sua “inglesidade” consigo para o estrangeiro e a traz de volta, inalterada. Por onde quer que vá, associa-se com outros turistas ingleses; por “hotel bom”, quer dizer um estabelecimento que se assemelha a um hotel inglês. O turista desinteressado reclama do chá ruim de um lugar onde poderia ter tomado um café excelente. […] Entretanto, existe uma outra forma de viajar, assim como existe uma outra forma de ler. Você pode apreciar a comida local e o vinho local; pode partilhar da vida estrangeira; pode começar a ver o país estrangeiro conforme ele é, não para o turista, mas para o habitante local. Pode, enfim, voltar para casa transformado, pensando e sentindo de forma como nunca pensara e sentira antes. O mesmo acontece com a literatura. Podemos ir além da primeira impressão causada por um poema à nossa sensibilidade moderna. Estudando elementos extrínsecos ao poema, comparando-o com outros poemas e posicionando-nos no período de sua composição, penetramo-lo com um olhar mais próximo daquele dos nativos — talvez vendo, agora, que as associações que antes dávamos às palavras antigas eram falas; que as verdadeiras implicações são diferentes das que inicialmente supúnhamos; que aquilo que achávamos estranho era comum na época, e o que nos parecia comum era, para os padrões da época, estranho. […] [Parece-me] um desperdício do passado se nos contentarmos apenas em ver, na literatura das épocas que se foram, apenas o reflexo da nossa própria face.
Escrevo a fim de encorajar, se possível, o segundo tipo de leitura. Em parte, claro, por ter uma motivação histórica. Sou tanto ser humano quanto amante da poesia; e, sendo humano, sou inquiridor: quero tanto saber das coisas quanto usufruir delas. Mas ainda que a satisfação fosse o meu único objetivo, mesmo assim escolheria essa abordagem, esperando que ela me levasse a níveis ainda mais novos de satisfação, a coisas que eu jamais experimentaria em meu tempo — formas de sentimento, sabores, jornadas ao passado real. Apesar de já ter convivido comigo e com o meu século por sessenta anos, não sou tão apegado com um e com o outro a ponto de não desejar o vislumbre de um mundo que jaz além de ambos. Da mesma forma como as férias de um turista desinteressado me parecem um desperdício da Europa — pois ele deixa de aproveitar muito mais do que poderia ser explorado — assim também me parece um desperdício do passado se nos contentarmos apenas em ver, na literatura das épocas que se foram, apenas o reflexo da nossa própria face.
— Como cultivar uma vida de leitura by C. S. Lewis (Coleção Fundamentos)