Considerem a proposição "X é um ser humano". A esse respeito há que se dizer, a princípio, que tal proposição, tão logo se trate de subsumir o senhor X sob o gênero "ser-humano", será obviamente uma proposição correta, pressupondo que se trate neste caso de um ser humano, o que, por sua vez, enquanto gênero, diferencia-se de outros - no caso, gêneros biológicos. Mas reflitam mais uma vez o que significa propriamente isto: "X é um ser humano". Um ser humano, nós dissemos. Se vocês dissessem em geral "X é um ser humano", assim corno é o caso da forma lógica usual ''A é B", então se insinuaria aí, a princípio, certo problema; pois o A que aí deve ser um B não é realmente B como um todo, mas antes B é um universal, e A é somente// um determinado representante dele. Existe, na verdade, uma identidade na medida em que o fenômeno, ou o A singular, é subsumido sob o conceito B, mas, mesmo assim, a equiparação aqui não é uma identificação completa. Com efeito, apesar da proposição "X é um ser humano ", quando vocês a vertem na forma lógica ''A é B", A não é inteiramente B, pois se trata apenas e tão somente de um representante de B. Hegel diria, então, que isso, formalmente, tem um significado seríssimo. Mais precisamente, ele diria que - e isso, creio eu, pode mostrar o rigor e a peculiar liberdade, a quase lúdica superioridade que está contida no pensamento dialético -, quando subsumo o X sob o conceito de humano, então no conceito de humano se pensa todo um rol de possibilidades que esse X singular efetivamente não é. Ele não se conformaria, portanto, com uma definição biolgica rudimentar de ser humano, mas diria, ao contrário, que se estamos falando do conhecimento acerca do humano em geral, conhecimento levado a termo de maneira profundamente vital, então pensamos também com categorias tais como liberdade, individuação, autonomia, especificidade [Bestimmtbeit] do uso da razão, assim como toda uma vasta gama de outras coisas. Essas categorias estão contidas implicitamente no conceito de humano enquanto sua determinação objetiva e são tais que não podemos, portanto, simplesmente negligenciar de modo arbitrário, como quando definimos operacionalmente que um ser humano é justamente um indivíduo que tem as características [Merkmale] biol6gicas do gênero. É preciso, creio eu, que realmente apenas escutemos uma vez com atenção uma expressão como " ser humano " , e prontamente se reconhecera' que nela estão contidas outras coisas que não meramente a differentia specifica em relação ao gênero biol6gico mais pr6ximo, ou seja, em relação aos demais hominídeos. Com efeito, diria Hegel, se no conceito de "ser humano" sempre está posto juntamente tal [elemento] enfático, precisamente esse momento que se relaciona à ideia de que alguém é um ser humano verdadeira mente, então a proposição "X é um ser humano", ao mesmo tempo, não é verdadeira; pois esse elemento enfático, que nela está posto sem que tenha precisado aparecer sequer implicitamente, tal elemento enfático não está, realmente, aqui// e agora, efetivado em nenhum ser particular. Poderíamos quase dizer que simplesmente não há ainda algo assim como o ser humano, ou antes, algo como aquilo que o conceito de humano propriamente compreende, a partir de si, de maneira objetiva. Em outras palavras: a proposição "X é um ser humano" é correta, tal como eu lhes disse, e falsa ao mesmo tempo. Na verdade, estou convicto de que bastaria apenas aplicar, por uma vez que seja, essa proposição a um humano qualquer, [afirmando] que este a quem nos referimos é um ser humano, e prontamente reconheceremos esta diferença [D!iferenz], isto é, reconheceremos que ele ainda não satisfaz propriamente ao conceito de humano em sentido enfático e, portanto, ao conceito de humano no sentido da verdade absoluta. Pois isso pressuporia, sem dúvida, que ele justamente pudesse portar em si próprio tal conceito enfático de humano, ou seja, um conceito verdadeiro de ser humano e, ao fim e ao cabo, também um conceito da correta e verdadeira organização do mundo enquanto tal. Quando dizemos "ser humano", a expressão nos diz, mesmo que subjetivamente nós não o percebamos desse modo, mais do que o simples gênero.
— Introdução à dialética by Theodor W. Adorno (Page 209 - 211)