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Terence Eagleton: Como ler Literatura (Portuguese language, L&PM) No rating

"A maioria dos livros introdutórios sobre teoria ou análise literária comete o mesmo pecado capital: …

Hoje em dia, a palavra “character” [até aqui traduzida como “personagem”], além de figura literária, pode significar também uma letra, um símbolo, um caractere ou caráter, em suma. Vem de um termo grego antigo, significando um sinete ou timbre que imprime uma marca específica. Daí passou a significar a marca característica de um indivíduo, e não apenas sua assinatura. Um character, tal como uma character reference [“carta de referência”, sobre o caráter de alguém] hoje em dia, era um sinal, um retrato ou descrição de determinado indivíduo. Depois de algum tempo, veio a designar a pessoa como tal, homem ou mulher. O caráter, como sinal que representava o indivíduo, passou a ser o caráter, como identidade própria do indivíduo. O que havia de característico na marca se tornou o caráter único daquela pessoa. Assim, a palavra “caráter” é um exemplo de uma figura de linguagem conhecida como sinédoque, em que a parte representa o todo. O interesse disso não é meramente técnico. A transição de “caráter” como marca peculiar de um indivíduo para “caráter” como identidade do próprio indivíduo está ligada a toda uma história social. Faz parte, em suma, do nascimento e desenvolvimento do individualismo moderno. Agora os indivíduos são definidos pelo que têm de característico, como a assinatura ou a personalidade inimitável. O que nos diferencia entre nós é mais importante do que o que temos em comum. O que faz de Tom Sawyer Tom Sawyer são todas aquelas características que ele não partilha com Huck Finn. Lady Macbeth é o que é por causa de seu temperamento voluntarioso feroz e de sua ambição impetuosa, e não porque sofre, se angustia, ri e espirra. Como estas são coisas que compartilha com o resto da espécie, não contam realmente como parte de seu caráter. Levada ao extremo, essa concepção bastante curiosa dos homens e das mulheres sugere que uma boa, talvez a maior, parte do que são e fazem não são realmente eles. Não é característica deles; e, como a personalidade ou o caráter é tido como único e exclusivo, todas essas outras coisas não podem contar como parte do indivíduo. Hoje, o termo “caráter” designa as qualidades morais e mentais de um indivíduo, como o comentário do príncipe Andrew, dizendo que levar um tiro na Guerra das Malvinas era muito bom para “formar o caráter”. Talvez ele queira formar seu caráter com um pouco mais de frequência. A palavra, claro, também se refere a figuras em romances, peças, filmes etc. Mas ainda usamos o termo para as pessoas de carne e osso, como em: “Quem são aquelas figuras [characters] ali vomitando pela janela do Vaticano?”. Também pode indicar uma pessoa caprichosa ou cheia de manias, como em “Meu Deus, que figura! [character]”. Interessante notar que o termo é usado com mais frequência para os homens do que para as mulheres, e reflete um gosto muito inglês pela excentricidade. Os ingleses tendem a admirar gente ranheta e inconformada, que faz questão de não se dar com o próximo. Esses esquisitões são unanimemente incapazes de ser qualquer coisa, a não ser eles mesmos. Quem anda com um arminho no ombro ou usa saco de papel pardo na cabeça é tido como uma figura [character], o que sugere que suas excentricidades devem ser aceitas com simpatia. Há um espírito de tolerância na palavra character nessa acepção de “que figura!”. Poupa-nos o trabalho de botar uma meia dúzia na cadeia.

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