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Terence Eagleton: Como ler Literatura (Portuguese language, L&PM) No rating

"A maioria dos livros introdutórios sobre teoria ou análise literária comete o mesmo pecado capital: …

Não existe desvio sem norma. Os idiossincráticos podem se orgulhar em ser obstinadamente eles mesmos, mas em certo sentido a excentricidade depende da existência de pessoas “normais”. Isso fica claro, mais uma vez, no mundo de Dickens, cujas figuras tendem a se dividir entre convencionais e grotescas. Para cada Pequena Nell, melancólico modelo de virtude em A loja de antiguidades, há um Quilp, um anão brutal do mesmo romance que masca charutos acesos e ameaça morder a esposa. Para cada jovem gentil e discreto como Nicholas Nickleby, há um Wackford Squeers, um mestre-escola caolho, brutal e calhorda da mesma obra, que tiraniza os alunos e, em vez de ensiná-los a soletrar a palavra “janela”, coloca-os a limpar as janelas da escola. O problema é que, se os personagens normais têm toda a virtude, as figuras aberrantes têm toda a vida. Ninguém tomaria um suco de laranja com Oliver Twist se tivesse oportunidade de dividir uma cerveja com Fagin. A patifaria é mais atraente do que a respeitabilidade. No momento em que as classes médias vitorianas definiram a normalidade como a parcimônia, a prudência, a paciência, a castidade, a docilidade, a autodisciplina e a industriosidade, estava claro que o demônio ficaria com o melhor. Numa situação dessas, claro que a opção é pela aberração. Daí a obsessão pós-moderna com vampiros e horrores góticos, com o pervertido e o marginal, que se tornou tão ortodoxa como eram antigamente a parcimônia e a castidade. Poucos leitores do Paraíso perdido preferem o Deus de Milton, que fala como um funcionário público enfezado, ao Satanás em atitude de desafio e indisfarçada revolta. Com efeito, é quase possível especificar o primeiro momento na história inglesa em que a virtude se torna maçante e o vício, atraente. O filósofo Thomas Hobbes, escrevendo nos meados do século XVII, admira qualidades heroicas ou aristocráticas como a bravura, a honra, a glória e a magnanimidade; o filósofo John Locke, escrevendo no final do século XVII, enaltece os valores de classe média como o trabalho, a parcimônia, a sobriedade e a moderação.

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