Marte reviewed Maus by Art Spiegelman
"Se vida significa vitória, morte significa derrota"
5 stars
Li MAUS duas vezes esse ano.
As duas foram desconfortáveis, mas na segunda leitura, consegui prestar mais atenção em detalhes que passaram um pouco batidos na sede de ver como a história terminava. Histórias em quadrinhos são minhas preferidas porque conseguem passar certos detalhes que só consigo notar em texto com maior dificuldade. Não consigo imaginar Maus sendo em outro formato. Parte da sacada de Spiegelman é a representação de humanos como animais antropomorfizados. Judeus são ratos, alemães não-judeus são gatos, poloneses são porcos, estadunidenses são cachorros, franceses são sapos, suecos são cervos... Além da óbvia metáfora entre caçador e caçado, entre rato e gato, Spiegelman força os próprios estereótipos pseudocientíficos de raça. Por exemplo, a esposa francesa de Spiegelman, convertida ao judaísmo, pede para ser representada por rato dentro da própria narrativa. Mas quem é ela, e onde ela se insere no jogo de raças da Europa?
Raças humanas não existem. Por isso, os limites de quem é rato e quem não é são tão fluidos na obra de Spiegelman. Inclusive, na segunda parte, escrita após a publicação da primeira parte (aqui, elas são publicadas juntas), Spiegelman se auto-retrata usando uma máscara de rato sobre um rosto humano. O simplismo determinista que coloca um grupo como vítima e outro grupo como algoz sem nenhum nuance não está presente em MAUS. Obviamente, os judeus foram as principais vítimas do genocídio perpetuado pelos nazistas, aqui não cabe nenhum relativismo. Entretanto, a idealização de vítima quase como um anjo heroico é distante da realidade. A realidade do Holocausto impede a construção de idealizações. Como diz o próprio Vladek Spiegelman, "Amigos? Seus amigos? Se trancar elas em um quarto por uma semana, aí ia ver o que é amigo".
Na minha percepção, esse ponto é demonstrado diversas vezes pela obra nas interações entre personagens. Uma amiga me disse ainda hoje que não consegue entender "colonizado que se mete com neonazismo". Eu disse pra ela, muito sério, que sujos são sempre os outros. Como a existência do ariano é só um devaneio sem fatos para sustentar sua realidade, todo mundo tem um motivo para se achar ariano, i.e. o produto mais avançado da seleção natural... Até agora.
Outra coisa que eu acho importante nesse livro é a construção de Art com seus familiares, principalmente seu pai e sua madrasta, e o fantasma de sua mãe. O livro não busca esconder os problemas de relacionamento entre as partes envolvidas, que são profundamente afetadas pelo trauma intergeracional produzido pelo Holocausto. Como o próprio autor prefere se referir, o livro é acima de tudo um livro para análise de relações humanas.
Em resumo, MAUS é um livro sobre nazismo, mas também um livro sobre relações sociais em momentos de mais profundo desespero, de relações familiares afetadas por trauma intergeracional, e um excelente exemplar de como utilizar quadrinhos para narrar histórias que nos marcam, inclusive as que marcam literalmente.
Impressionante. Um dos meus livros favoritos para a vida.