Marte reviewed What about Me? by Paul Verhaeghe
Comecei amando esse livro. Aí nos 20% finais, o autor estragou tudo
4 stars
Ponderei por um tempo qual nota daria para esse livro, e durante a leitura minha nota foi de 4 para 5, de 5 para 4 e de 4 para 3, só de raiva. Mas vou manter o 4, e explico o porquê.
Verhaeghe, o autor, é um psicanalista belga. Peguei essa dica de leitura lendo Pussy Riot, o último livro que resenhei aqui. O título me chamou atenção, e Nadya citou Verhaeghe durante a parte de seu livro que fala sobre antipsiquiatria. Dado esse contexto, eu esperava uma parte maior do livro dedicada a destrinchar o DSM-V e criticar ferrenhamente a cultura neoliberal de transformar diagnósticos em identidades -- comunidade autista, estou falando de vocês (nós)! Ele de fato faz isso, mas em uma parte muito pequena que pareceu até meio corrida perto do tamanho do livro.
Colocações de Verhaeghe que eu considero que fazem o livro valer a pena:
1) Aproximações entre a cosmovisão cristã e a científica: ambas partem do princípio de que o homem é mau por natureza, e precisa ser purificado, seja pela cristandade, seja pelo conhecimento científico que o tira da ignorância.
2) Colocação de como o cristianismo transforma a visão do mundo ocidental da imanência para a transcendência e como isso provavelmente ajuda a desembocar no neoliberalismo dos anos 1990-2020.
3) Indicação de como A Origem das Espécies de Darwin é um dos livros mais mal compreendidos e que sofre com oportunismo de toda a história da humanidade. Verhaeghe faz diversas referências a Darwin para contrapor a lógica oportunista do darwinismo social.
4) Crítica à noção de progresso como uma escada que só sobe, e como isso contradiz a própria evolução como colocada por Darwin.
5) Aproximações entre religião e ideologia.
6) Apontamento de como o neoliberalismo é um novo paradigma identitário que é bastante disseminado em todas as outras partes do domínio humano, não apenas a economia, como de costume com outras ideologias econômicas (debatível).
7) Crítica à noção de caridade: filantropia no lugar de emancipação é um clássico do neoliberalismo, e é apontado nesse livro.
8) Conflitos intergeracionais existem desde sempre, mas é possível que dessa vez eles estejam mais fortes do que nunca pela velocidade que o neoliberalismo se espalhou e mudou todo um paradigma de identidades (e ele detalha isso bastante bem).
9) Críticas à escola neoliberal e seu crescente papel de selecionar pupilos que não possam se adequar ao trabalho (neoliberal) futuramente e já encaminhá-los para receber uma alcunha do DSM-V - nunca tinha visto nesse ponto de vista, mas achei bastante perspicaz. O trecho "In a neo-liberal society, the function of education is not so much to train individuals to a high level as to select youngsters and mould them to fit a certain profile that will guarantee the highest productivity" expressa muito o que eu penso da educação superior no Brasil, especialmente nos campos da Engenharia.
10) Comparação entre psicólogos e psicoterapeutas com a função dos padres antigamente: os psicoterapeutas são receptáculos de confissões sobre nosso fracasso no sistema, e precisam fornecer estratégias para que sejamos menos fracassados.
11) Constatação de que o neoliberalismo está trazendo o que há de pior no ser humano -- e não precisa ser assim, porque não somos maus por natureza, nem particularmente bons.
12) Críticas ao DSM-V: "in the current version of the illness model, we constantly run up against circular arguments that only provide the illusion of a scientific explanation.", "A preoccupation with individual symptoms may lead to a “disembodied psychology” which separates what goes on inside people’s heads from social structure and context."
13) Críticas ao cientificismo: "The current dominant paradigm in psychiatry is the illness model. This also ties in seamlessly with the reduction of science to scientism: all results must be generalisable, based on objective and value-free research using accepted methods, independent of context."
14) A colocação de que o modelo do diagnóstico psiquiátrico retira de nós e da sociedade a responsabilidade por resolver problemas individuais e sociais, respectivamente, por meio do clássico "It's a disease, so I can't do anything about it". Já escrevi anteriormente sobre como o autismo e outras neurodivergências vêm ganhando espaço enorme no ideário popular por causa do determinismo biológico e genético... Mas isso é papo para outra hora.
15) O papel da desigualdade social e econômica no mal-estar da população em geral, incluindo a tal da saúde mental.
Enfim, como vocês podem notar, teve vários pontos fortes no livro. Os pontos fracos, na minha opinião, foram o pouco espaço dedicado a analisar a construção de identidade a partir de diagnósticos psiquiátricos, um mal do nosso século; além disso, o autor claramente é anticomunista apesar de ser ferrenho crítico do neoliberalismo. Isso me deu um pouco de preguiça, apesar de eu entender os pontos dele sobre como não conseguiremos ser completamente homogêneos enquanto sociedade. O autor também é bastante crítico de críticas à existência de autoridade, o que eu acho disputável.
Mas, sem dúvidas, o que estragou foi o final, que propõe basicamente uma ação individual para subverter o neo-liberalismo, argumentando que o problema não são os outros, somos nós mesmos: "And we ourselves must take the first steps towards creating that social polity through the choices that we make." Acho preocupante que o autor nade tanto para morrer na praia (ou seja, faça uma argumentação brilhante no começo e meio do livro para terminar nessa ladainha individualista).
De qualquer forma, acho que vale a pena a leitura.