Ricardo Lourenço reviewed As três vidas by João Tordo
Review of 'As três vidas' on 'Goodreads'
4 stars
“O que foi verdade e o que é, inevitavelmente, ficcionado, devido aos limites da memória, não importa – em última análise, a própria realidade é objecto de ficção. O mais importante é libertar-me dos fantasmas, pois acarreto com as sombras de todas as coisas a que não tive coragem para colocar um fim. Isso reflecte-se, sobretudo, nos meus sonhos: ao contrário da crença habitual, não me parece que os sonhos sejam o espelho dos nossos desejos; cá para mim, acho que os sonhos são o espelho dos nossos horrores, dos nossos piores medos, da vida que poderíamos ter tido se, numa altura ou noutra, não fôssemos incomensuravelmente cobardes.”
Com o seu terceiro romance João Tordo vê o seu trabalho reconhecido através do Prémio Literário José Saramago, afirmando-se assim no panorama literário português através de um estilo que, apesar das evidentes influências que nele se fundem, lhe permite alcançar uma voz própria.
As Três Vidas é uma obra ambiciosa, apresentando diversos enredos cruzados em que o autor consegue, com sucesso, entrelaçar a história pessoal do narrador com alguns dos principais acontecimentos da História mundial, desde intrigas políticas a crimes sangrentos, culminando na maior tragédia do séc. XXI.
“Compreendi, nesse tempo de desilusão, algumas das coisas que Milhouse Pascal me tentaria ensinar: que, preenchidas que estão as necessidades primeiras da vida, o espírito torna-se ágil e vagabundeia, lançando sobre o mundo as trevas próprias da sua condição. Ignorância é força, escrevera Orwell: quanto mais pensava sobre tudo, mais facilmente perdia aquilo em que pensava, e a matéria palpável de que é feito o mundo parecia começar a fugir-me debaixo dos pés.”
Após a morte do pai, o protagonista vê-se obrigado a preservar o bem-estar da sua família, acabando por conseguir ser admitido como arquivista de António Augusto Milhouse Pascal, homem misterioso e abastado que se refugia num casarão no Alentejo: a Quinta do Tempo. Isolado do mundo, num clima de suspense digno de um conto de Poe, vai descobrindo progressivamente o teor da actividade do seu patrão, e acaba por se apaixonar pela neta mais velha de Pascal, Camila – três vidas ligadas de forma determinante.
As revelações são efectuadas num ritmo apropriado, permitindo acompanhar os dilemas pessoais do narrador enquanto vamos conhecendo alguns dos clientes de Augusto Pascal que, de alguma forma, tiveram um papel importante em certos episódios históricos. O autor consegue assim um equilíbrio importante, refrescando o interesse do leitor pela vida de cada uma das personagens sem nunca nos saturar com uma pormenorização exagerada e desnecessária.
“Tentando concentrar-me na leitura, olhava para o poster de Philippe Petit por cima da minha cama e via aquele homem desconhecido como uma figura mais real do que a gente de carne e osso, uma companhia das horas mortas que, tal como eu, procurava atravessar uma corda bamba que, a qualquer momento, ameaçava desaparecer sob os seus pés, revelando finalmente os abismos insondáveis do mundo.”
Paira ao longo de todo o romance uma sensação de incerteza, resultante da inexperiência do jovem protagonista que, envolto num processo de autodescoberta, é confrontado por uma sucessão de acontecimentos para os quais não se encontrava preparado. Impulsionado pelas circunstâncias e por um estado emocional instável, acaba por cometer actos que o irão assombrar ao longo de muitos anos.
Assim, As Três Vidas representa um acto de expiação por parte do narrador que pretende exorcizar definitivamente os fantasmas do passado, sendo também um livro sobre a coragem necessária para enfrentar a imprevisibilidade inerente às nossas vidas, sobre a determinação que nos impede de cair no abismo.
“A presença física não é prova de nada. O lugar onde vivemos é o lugar que habitamos em espírito. E, em espírito, nunca regressei. Estou espalhado pelas almas de todas as pessoas que conheci, de todas as coisas que, por lhes ter tocado, modifiquei. Irás aprender isso com o tempo. Um homem não é uma entidade, são muitas e, se não nos decidimos, a tempo certo, por uma delas, acabamos feitos em retalhos.”