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Review of 'O apocalipse dos trabalhadores' on 'Goodreads'

4 stars

“Interessa-me que seja a força da frase, a capacidade expressiva do texto a seduzir o leitor para as palavras mais importantes, como se as palavras, sozinhas, se constituíssem como heroínas de um jogo exclusivamente delas, vencendo umas sobre as outras pela sua natureza significativa - inclusive no encontro das convicções de cada leitor - ou simplesmente harmonizando-se e defendendo-se em conjunto, como apaixonadas umas pelas outras.”

VHM, em entrevista para a Os Meus Livros

O aspecto mais característico na escrita de Valter é, definitivamente, a ausência de maiúsculas aliada à redução do uso de pontuação ao mínimo, procurando, segundo o autor, criar uma aceleração na leitura. A repercussão ao nível da velocidade de leitura é discutível, mas o choque inicial ultrapassa-se após um breve período de habituação que, consequentemente, nos permite desfrutar da sua fluidez.

“para um homem, achava, as coisas estavam feitas de modo diferente. os empregos são melhores, as liberdades melhores, e até a consciência distinguia uns de outras. para as mulheres, uma devassidão era já um perigo de grande luxo. se alguém o descobrisse, não arranjaria a maria da graça mais chão para esfregar.”

Depois de o remorso de baltazar serapião, pelo qual recebeu o Prémio Literário José Saramago da Fundação Círculo de Leitores, Valter apresenta-nos uma história que se foca em temas tão actuais como a precariedade do trabalho, o preconceito para com os imigrantes em Portugal e as desigualdades entre homens e mulheres, que apesar de se terem vindo a atenuar, continuam ainda a assolar a nossa sociedade. Dentro desta realidade, as suas personagens debatem-se entre a subsistência e a busca da felicidade, que no contexto do romance, é alcançada através das relações afectuosas que estas estabelecem.

“olha, sabes que hoje em dia se armazena informação que nunca, em toda a eternidade, vai voltar a ser consultada. quê. ando com isso na cabeça. tu andas é com o maldito na cabeça, não pensas noutra coisa. é que com isto da informática tudo se regista, do mais importante ao mais insignificante. desde as coisas do estado até à rotina dos adolescentes. e muito do que se regista não será mais consultado, porque não haverá ninguém com interesse ou sequer com tempo para o fazer. que angústia. é como haver muita gente a querer deixar uma marca para o futuro e o futuro estar sobrelotado.”

Entre o humor inteligente e a criatividade presentes ao longo do texto, torna-se interessante verificar como as ideias mais profundas nascem das trivialidades do quotidiano, que povoam os diálogos entre Maria da Graça e Quitéria. É na simplicidade e despudor dessas conversas que nos vamos familiarizando com os seus amores controversos, assim como se torna visível o quanto a sua vida é condicionada pelas dificuldades financeiras, uma vida em que o seu bem-estar não aumenta proporcionalmente à sua carga laboral.

“era, na realidade, como um leão de fantasia que, subitamente, podia ganhar a vida e, obviamente, trazer no estômago toda a grande fome ucraniana. o medo, permanentemente, era quase palpável. um amor cheio de medo e palpável. a cada segundo passível de acabar, o amor, o medo seria para sempre.”

Paralelamente à história das duas mulheres-a-dias, acompanha-mos a vida de Andriy, um jovem imigrante ucraniano, tal como o enfraquecimento físico e psicológico que afecta o seu povo desde a Grande Fome da Ucrânia, numa evidente denúncia à xenofobia em Portugal. Trata-se, portanto, de uma manifestação do espírito igualitário de Valter Hugo Mãe, que desta forma explora uma temática bastante menosprezada no panorama literário português.

Em suma, o apocalipse dos trabalhadores, como retrato da situação de algumas das classes sociais mais desfavorecidas, desperta-nos do egoísmo inerente ao ser humano, colocando nas nossas mãos a responsabilidade por criar uma sociedade onde impere o respeito mútuo e não a indiferença.

“o mealheiro ficou sobre o frigorífico da casa dos pais e, mesmo na ausência do andriy, a ekaterina punha-lhe umas moedas pequenas, muito esporadicamente, porque lhe fazia crer que assim tomava conta do filho. Quando ela não o fazia, fazia-o sasha, também um pouco às escondidas, a pensar na moeda que ali caía como algo que caísse no colo de andriy, um abraço, um beijo, uma saudade forte que não os poderia abandonar. olhavam um para o outro, quando se deflagravam naquele gesto tolo, e sentavam-se juntos nos bancos mais ao pé da janela. podia chorar brevemente, umas lágrimas de tristeza que quase seriam impossíveis de conter, e depois sonhavam acordados com portugal.”