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Review of 'O evangelho do enforcado' on 'Goodreads'

4 stars

Representando um mundo medieval português do séc. XV, O Evangelho do Enforcado aborda de forma indirecta os enigmáticos painéis ditos de São Vicente. Indirectamente porque, ao invés de identificar cada uma das figuras representadas nos painéis, David Soares procura, por um lado, ilustrar com autenticidade o panorama político, económico e social da época, e por outro, desmistificar a desfasada imagem que temos de algumas das personagens históricas que figuram no romance. O desenvolvimento destes elementos, não só proporciona um sólido suporte para as teorias desenvolvidas posteriormente (no respeitante à simbologia por detrás dos painéis), como torna possível a coesão narrativa apresentada pelo autor.
Este compromisso com a verdade já tinha sido assumido nos anteriores romances de David Soares, algo que o próprio destacou em diversas entrevistas:

“A minha preocupação principal é com a história com h pequeno. A ficção vem sempre em primeiro lugar. Mas quando estou a trabalhar com informações históricas baseadas em factos reais, tenho a preocupação de ser o mais verdadeiro possível, no que concerne à originalidade, e às intenções do texto ficcional. E a vontade de procurar a verdade, muitas vezes entra em conflito com aquela imagem estereotipada e mitificada de certas personagens da nossa História.” in Livraria Ideal

Assim, a discrepância entre o retrato de certas personagens e a ideia generalizada que temos destas resulta, não de um intenção em chocar o leitor, mas sim da consulta de registos e análises históricas em que Soares se baseia, que muitas vezes estilhaçam a aura de virtude que rodeia essas mesmas figuras.

“(...) os anjos de alguns são os diabos de outros.”

A extensiva investigação e a imaginação do autor combinam-se, alimentando uma construção de personagens impressionante, quer ao nível da caracterização da sua personalidade, quer ao nível da estratificação social(1). De entre estas personagens, destaca-se Nuno Gonçalves (pintor dos painéis), apresentado como um psicopata que nutre um intenso fascínio por cadáveres.

“O coração dele era um cemitério: só os mortos conseguiam entrar.”

À necrofilia juntam-se também as tendências assassinas, algo que, no entanto, Nuno consegue conjugar com a sua ascensão como pintor, desde um mero aprendiz até ao posto de pintor régio, através do seu estilo pessoal e da diferente perspectiva com que encara a pintura.

“Gosto de sombras, pensou ele. Parecem almas que os mortos deixaram cair ao chão.”

O romance prima também pela vívida imagem que nos transmite da sociedade do séc. XV, tanto na descrição dos seus costumes e crenças, como na linguagem utilizada. Dentro dessa imagem geral, encaixa-se Lisboa, palco principal da história, uma cidade em crescimento, mas também uma cidade de contrastes, não existindo qualquer pudor em mergulhar no seu lado mais obscuro, revelando a pobreza, a sujidade e a fome que nele se ocultam. Um ambiente em que a miséria impera, e a esperança se esbate.

“Esta cidade é uma ferida, pensou. Somos o sangue dela e estamos todos doentes. As muralhas vão fechar-se sobre as nossas cabeças... Vamos secar e morrer. Todos, todos.
(...)
A não ser que a ferida se mantenha sempre a sangrar, pensou. Assim nunca irá fechar. É por isso que sofremos. O mundo precisas de sangrar para não morrer. Riu. Devíamos sangrar a rir e rir a sangrar. Devíamos comer carne nos dias de peixe e peixe nos outros.
Esta cidade é o crucifixo onde estamos todos pregados.”

É de louvar todo o trabalho efectuado por David Soares, que com as suas palavras consegue fundir o fantástico com a realidade, pintando um quadro medieval de incomparável (ainda que por vezes assustadora) beleza. O Evangelho do Enforcado é, portanto, mais um importante passo para a cartografia do imaginário português, assim como um exemplar antídoto contra a inevitabilidade inerente à nossa vida.

“A criação – a arte – é o único antídoto contra a morte.
Aquilo que se cria na terra subsiste no Todo.
Por isso... Sê responsável como o que crias, pintor.
Não desperdices... nada.”


(1) Neste capítulo, estranha-se a ausência de tradução das frequentes passagens em Latim, especialmente tendo em conta todo o cuidado reflectido na elaboração das notas e bibliografia finais. Por outro lado, o mesmo não acontece com o francês, embora a presença de um intérprete nos diálogos efectuados nessa língua sirva de argumento justificativo, dado que seria redundante e repetitivo adoptar à letra as falas na língua original. No entanto, considero que esse espírito prático deveria englobar o Latim, seja através de notas de rodapé, ou notas no final dos capítulos em que as falas se inserem.