11.3.3 Politica Agrária e Reforma Agrária
As discussões sobre a reforma agraria foram das mais intensas durante a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988. E o debate está longe de terminar. Na medida em que ainda prevalece no Brasil uma concepção privatista de propriedade, todas as formas de regulá-la para que cumpra sua função social são vistas com certa desconfiança, a despeito das claras disposições constitucionais nesse sentido. Com frequência a reforma agrária é vista como contrária ao direito de propriedade e à livre iniciativa e associada a projetos de coletivização da propriedade. Essa é uma visão equivocada. Ao longo de todo o século xx, e mesmo antes, vários países do mundo capitalista passaram por algum tipo de reforma agrária, como forma de democratizar o acesso à propriedade rural, historicamente concentrada nas mãos de poucos.
No Brasil, da mesma forma que a riqueza em geral é extremamente mal distribuída", também a propriedade de imóveis rurais o é. Grandes propriedades (latifúndios) ainda são a forma dominante de propriedade rural. Embora propriedades com mais de mil hectares correspondam a 1% do número total de propriedades rurais, elas ocupam 47% do total da área rural de propriedade privada no Brasil. Ao mesmo tempo, há milhares de famílias brasileiras que não têm acesso à terra.
A Constituição tem um capítulo dedicado à política agrícola e fundiária e à reforma agrária (capítulo im do título VII). Dos sete artigos desse capítulo, os três primeiros são dedicados à reforma agrária (arts. 184 a 186). Dada a polarização ideológica que dominou os debates constituintes nessa questão, é facilmente perceptível que esses artigos expressam uma solução de compromisso entre várias tendências. E a polarização que influenciou os debates constituintes também tende a influenciar a interpretação desses artigos até hoje.
O conteúdo, os objetivos e os instrumentos definidos nos arts. 184 a 186 devem ser interpretados em conjunto, pois eles contém um intrincado jogo de regras gerais e exceções. Uma sistematização das normas contidas nesses artigos será apresentada a seguir.
O art. 184 define: (1) a competência para a desapropriação para fins de reforma agrária, que é da União: (2) o requisito geral para que uma propriedade possa ser desapropriada para essa finalidade, o descumprimento de sua função social; e (3) a forma de pagamento para os casos de desapropriação: prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão.
O art. 185 estabelece duas exceções à possibilidade de desapropriação para fins de reforma agrária com base no procedimento previsto pelo art. 184: (1) a pequena e a média propriedade, desde que seu proprietário não possua outra (art. 185, 1) e (2) a propriedade produtiva (art. 185, 11). Não há outra interpretação para essas duas cláusulas de exceção que não seja a seguinte: a pequena e a média propriedade (nos casos em que seus proprietários ou proprietárias não possuam outra) e as propriedades produtivas em geral não podem ser desapropriadas segundo os procedimentos do art. 184, não importa se cumpram ou não a sua função social. Não há interpretação teleológica ou sistemática que possa levar a conclusão distinta. Qualquer conclusão diferente dessa privaria o art. 185 de qualquer significado".
Por fim, o art. 186 define os critérios para avaliar se uma propriedade cumpre sua função social. Nos termos dos quatro incisos desse artigo, uma propriedade cumpre sua função social quando, simultaneamente, hå: (1) aproveitamento racional e adequado; (11) utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; (III) observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e (tv) exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Basta que um desses requisitos seja descumprido para que a propriedade deixe de cumprir sua função social.
Assim, a leitura completa desses três artigos (184, 185 e 186) conduz à conchusão de que só são suscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária com fase no procedimento previsto no art. 184 as propriedades rurais que, ao mesmo tempo, sejam grandes, improdutivas e não cumpram a sua função social. Neste âmbito, os casos mais polêmicos são, sem dúvida, (a) a grande propriedade que, embora produtiva, descumpre sua função social e (b) a grande propriedade que, ainda que improdutiva, cumpre a sua função social. De acordo com o que foi afirmado antes, ambos os casos são imunes à reforma agrária. As polêmicas em torno desses exemplos decorrem de algumas confusões interpretativas, que levam a crer, de um lado, que uma propriedade que descumpra a sua função social está necessariamente incluída no escopo do art. 184 e, portanto, é suscetível de desapropriação nos termos desse artigo e, de outro lado, que uma propriedade improdutiva necessariamente descumpre sua função social e, portanto, também é suscetível de ser desapropriada para fins de reforma agrária. No texto que segue, esses dois exemplos servirão de mote para definir os contornos precisos da interpretação dos arts. 184, 185 e 186. Antes, contudo, é preciso que sejam definidos alguns conceitos, especialmente os conceitos de pequena e média propriedade e de propriedade produtiva, que são os dois grupos de propriedade que o art. 185 define como imunes à desapropriação para re Forma agrária. A própria Constituição não define o que são propriedades pequenas médias, tampouco o que são propriedades produtivas.
— Direito Constitucional Brasileiro by Virgílio Afonso Da Silva (Page 225 - 227)