“A crueza e a feiura da vida europeia moderna” — aquela vida real cujo contato nós deveríamos acolher — “é o sinal de uma inferioridade biológica, de uma reação insuficiente ou falsa ao ambiente.”[65] O mais louco castelo que jamais saiu da bolsa de um gigante numa estória gaélica selvagem é não apenas muito menos feio que uma fábrica robotizada; ele também é (para usar uma frase muito moderna), “num sentido muito real”, um bocado mais real. Por que não deveríamos escapar disso ou condenar o absurdo “sombrio e assírio” das cartolas ou o horror morlockiano das fábricas? Eles são condenados até pelos autores daquela forma mais escapista em toda a literatura, as estórias de ficção científica. Esses profetas frequentemente predizem (e muitos parecem ansiar por) um mundo semelhante a uma grande estação de trem com teto de vidro. Mas deles, via de regra, é muito difícil arrancar o que os homens em tal cidade-mundo vão fazer. Eles podem abandonar a “panóplia vitoriana completa” em favor de trajes largos (com zíperes), mas usarão essa liberdade principalmente, parece, para brincar com brinquedos mecânicos no jogo facilmente entediante de se movimentar em alta velocidade. A julgar por algumas dessa estórias, eles ainda serão tão cheios de luxúria, vingativos e gananciosos como sempre; e os ideais de seus idealistas dificilmente irão além da esplêndida noção de construir mais cidades do mesmo tipo em outros planetas. É, de fato, uma era de “meios melhorados para fins deteriorados”. É parte da moléstia essencial de tais dias — produzindo o desejo de escapar, não realmente da vida, mas da nossa presente época e autoimposta desgraça — que nós estejamos agudamente conscientes tanto da feiura de nossas obras como de seu mal. De forma que para nós o mal e a feiura parecem indissoluvelmente ligados. Achamos difícil conceber o mal e a beleza juntos. O medo da bela fada que perpassou as eras mais antigas quase escapa à nossa percepção. Em Feéria pode-se, de fato, conceber um ogro que possui um castelo horrendo como um pesadelo (pois o mal do ogro o quer assim), mas não se pode conceber uma casa construída com um bom propósito — uma estalagem, um albergue para viajantes, o salão de um rei virtuoso e nobre — que ainda assim seja repulsivamente feia. No momento presente, seria temerário esperar ver uma que não o fosse — a menos que tenha sido construída antes do nosso tempo.
Esse, entretanto, é o aspecto “escapista” moderno e especial (ou acidental) das estórias de fadas, que elas compartilham com romances e com outras estórias do ou sobre o passado. Muitas estórias sobre o passado só se tornaram “escapistas” em seu apelo por sobreviverem de uma época em que os homens estavam, via de regra, deliciados com a obra de suas mãos, até nosso tempo, quando muitos homens sentem desgosto a respeito de coisas feitas pelo homem.
Mas há também outros e mais profundos “escapismos” que sempre apareceram nos contos de fadas e na lenda. Há outras coisas mais sombrias e terríveis das quais fugir do que o barulho, o fedor, a crueldade e a extravagância do motor de combustão interna. Há fome, sede, pobreza, dor, tristeza, injustiça, morte. E, mesmo quando os homens não estão enfrentando coisas duras como essas, há antigas limitações para as quais as estórias de fadas oferecem um tipo de escape, e velhas ambições e desejos (tocando as próprias raízes da fantasia) para as quais elas oferecem uma espécie de satisfação e consolação. Algumas são fraquezas ou curiosidades perdoáveis: tais como o desejo de visitar, livre como um peixe, o mar profundo; ou o anseio pelo voo silencioso, gracioso, econômico de um pássaro, aquele anseio que o aeroplano frustra, exceto em raros momentos, visto no alto e por vento e pela distância silencioso, virando ao sol: isto é, precisamente quando imaginado, e não usado. Há desejos mais profundos: tais como o desejo de conversar com outras coisas vivas. Sobre esse desejo, tão antigo quanto a Queda, está largamente fundamentada a fala de animais e criaturas nos contos de fadas e especialmente a compreensão mágica de sua língua correta. Essa é a raiz de tais estórias, e não a “confusão” atribuída às mentes dos homens do passado não registrado, uma suposta “falta do senso de separação entre nós mesmos e os animais”.[66] Um senso vívido dessa separação é muito antigo; mas também o senso de que foi um rompimento: um fado estranho e uma culpa jazem sobre nós. Outras criaturas são como outros reinos com os quais o Homem rompeu relações e vê agora, somente de fora, a distância, estando em guerra com eles ou nos termos de um armistício desconfortável. Há uns poucos homens que têm o privilégio de viajar para fora um pouco; outros têm de ficar contentes com estórias de viajantes. Mesmo as que versam sobre sapos. Ao falar daquela estória de fadas bastante esquisita, mas bastante distribuída, O Rei Sapo, Max Müller perguntou de seu jeito direto: “Como é que tal estória jamais chegou a ser inventada? Os seres humanos, podemos esperar, foram em todas as épocas suficientemente educados para saber que um casamento entre um sapo e a filha de uma rainha era absurdo”. De fato, podemos esperar que sim! Pois, se não fosse assim, não haveria propósito na estória de forma alguma, dependendo, como ela depende, essencialmente do senso de absurdo. Origens folclóricas (ou suposições sobre elas) estão aqui totalmente fora de lugar. É de pouca valia considerar o totemismo. Pois, certamente, quaisquer que sejam os costumes ou crenças sobre sapos e poços que existam por trás dessa estória, a forma de sapo foi é preservada nessa estória de fadas[67] precisamente porque era tão esquisita, e o casamento, absurdo, de fato, abominável. Embora, é claro, nas versões que nos dizem respeito, gaélicas, alemãs e inglesas,[68] não haja realmente um casamento entre uma princesa e um sapo: o sapo era um príncipe encantado. E o propósito da estória não é achar que sapos são possíveis consortes, mas a necessidade de manter promessas (mesmo aquelas com consequências intoleráveis), algo que, junto com a observância de proibições, perpassa toda a Terra das Fadas. Essa é uma das notas das trompas da Terra dos Elfos, e não é uma nota difícil de ouvir.