A temática autismo sempre me chama atenção. Quando cruzei com esse livro na livraria, o título, a capa e a encadernação em capa dura me chamaram mais atenção ainda (apesar do preço salgado). De primeira eu já vi que era um livro de literatura e não um livro de guia médico, diagnóstico, autoajuda para autistas ou qualquer outra coisa. Mas foi justamente isso que me interessou, um livro de literatura em que o autismo é um dos personagens do show.
Esse é um livro português, então precisei ler com um dicionário PT-PT do lado. Não foi natural navegar por sua linguagem no começo do livro, mas com o tempo fui me acostumando.
Logo nos primeiros capítulos, somos expostos ao tom do livro: seco, controverso e politicamente incorreto. Aqui, somos expostos ao mais bruto pensamento das pessoas, e não o filtro que lhes ocupa o que sai da boca. Demorei um pouco para entender a mistura de focos e estilos narrativos, mas ao longo das 300 páginas a gente pega o jeito. Tem prosa corrida, prosa curta, tem diário, tem blog, tem carta, tem narrativa em primeira e terceira pessoas, uma hora é o ponto de vista do avô, outro do narrador acompanhando o pai, tudo isso fora da narrativa linear... Apesar dessa salada, gostei da ousadia do autor nesse ponto.
O que me aporrinhou o saco foram os capítulos do hospital. Logo no começo do livro, a gente é exposto ao fato de que Henrique, filho autista não-verbal de Marta e Rogério, foi atropelado ao sair da escola por descuido. Durante o livro, há alguns capítulos intercalados que acompanham a tensão dos pais e dos avós maternos na sala de espera das emergências, sem notícias de Henrique. Esses capítulos são arrastados, chatos e dá vontade de pulá-los, apesar de apresentarem algumas informações importantes para entendermos a dinâmica dessas pessoas entre si e em relação a Henrique. No último capítulo do livro, entretanto, entendemos por que essa série de capítulos são importantes: Rogério ao menos cogitou planejar a morte do próprio filho com a ajuda de seu pai, o avô paterno de Henrique, para que Marta não o deixasse por divórcio. Ficamos na dúvida se ele realmente executou seu plano, o que culminaria na internação de Henrique no hospital (que não sabemos se está vivo ou não), ou se está se sentindo culpado pelos acontecimentos terem se desenrolado de forma independente dele.
Seja como for, a mera possibilidade narrativa de um pai arquitetar o assassinato de seu filho autista e vocalizar com todas as palavras que odeia o autismo e que tudo seria melhor se Henrique não fosse nascido é altamente controverso. Em momentos de perseguição ao controverso na arte, esse livro com certeza não seria bem recebido por ser MUITO indigesto. Mas, curiosamente, isso foi o que eu gostei nele. É nojento, é abjeto, a gente odeia o Rogério por ter planejado o assassinato do seu filho que depende dele, eu odeio o Rogério e tudo o que envolve ele, odeio até o pai de Marta, Abílio, que é um velho nojento, mas eu gosto da ousadia artística de Valério Romão de colocar no papel pensamentos fétidos que às vezes passam pela mente humana. E em uma narrativa seduzente.
Valério Romão é, inclusive, pai de autista. Se isso é uma narrativa meio pessoal, eu realmente espero que não.
Em resumo, NÃO é um livro leve que deve ser lido para orgulho autista, MUITO pelo contrário. Mas se você gosta de narrativas brutais, sinceras e controversas, esse livro é pra você. Eu não sou, ou melhor, não costumo ser essa pessoa, mas mesmo assim achei interessante a experiência. Me lembrou de quando li Lolita.