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Miguel Medeiros

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Friedrich Engels: Anti-Dühring (Paperback, Português language, Boitempo Editorial) 5 stars

No ano em que se completam doze décadas da morte de Friedrich Engels (1820-1895), a …

Mas, afinal, em que consiste essa espantosa negação da negação, que amargura a vida do Sr. Dühring, até o ponto de ver nela um crime imperdoável, algo como se fosse um pecado contra o Espírito Santo a que os cristãos não admitem salvação possível? Consiste, como veremos, num processo muito simples, que se realiza todos os dias e em todos os lugares, e que qualquer criança pode compreender, desde que o libertemos da envoltura enigmática com que o cobriu a velha filosofia idealista e com que querem continuar cobrindo-o, porque assim lhes convém, os fracassados metafísicos da têmpera do Sr. Dühring. Tomemos, por exemplo, um grão de cevada. Todos os dias, milhões de grãos de cevada são moídos, cozidos, e consumidos, na fabricação de cerveja. Mas, em circunstâncias normais e favoráveis, esse grão, plantado em terra fértil, sob a influencia do calor e da umidade, experimenta uma transformação específica: germina. Ao germinar, o grão, como grão, se extingue, é negado, destruído, e, em seu lugar, brota a planta, que, nascendo dele, é a sua negação. E qual é a marcha normal da vida dessa planta? A planta cresce, floresce, é fecundada e produz, finalmente, novos grãos de cevada, devendo, em seguida ao amadurecimento desses grãos, morrer, ser negada, e, por sua vez, ser destruída. E, como fruto desta negação da negação, temos outra vez o grão de cevada inicial, mas já não sozinho, porém ao lado de dez, vinte, trinta grãos. Como as espécies vegetais se modificam, com extraordinária lentidão, a cevada de hoje é quase igual à de cem anos atrás. Mas tomemos, em vez desse caso, uma planta de ornamentação ou enfeite, por exemplo, uma dália ou uma orquídea. Se tratarmos a semente e a planta que dela brota, com os cuidados da arte da jardinagem, obteremos como resultado deste processo de negação da negação, não apenas novas sementes, mas sementes qualitativamente melhoradas, capazes de nos fornecer flores mais belas; cada repetição deste processo, cada nova negação da negação, representará um grau a mais nesta escala de aperfeiçoamento. E um processo semelhante se dá com a maioria dos insetos, como, por exemplo, com as mariposas. Nascem, estas, também, do ovo, por meio da negação do próprio ovo, destruindo-o, atravessando depois uma série de metamorfoses até chegar à maturidade sexual, se fecundam e morrem por um novo ato de negação, tão logo se consume o processo de procriação, que consiste em pôr a fêmea os seus numerosos ovos. Por enquanto nada mais nos interessa, nem que não apresente o processo a mesma simplicidade noutras plantas e animais, que não produzem uma, mas várias vezes, sementes, ovos ou crias. antes que lhes sobrevenha a morte; a única coisa que nos interessa é demonstrar que a negação da negação é um fenômeno que se dá realmente nos dois reinos do mundo orgânico, o vegetal e o animal. E não somente nestes reinos. Toda a geologia não é mais que uma série de negações negadas, uma série de desmoronamentos de formações rochosas antigas, sobrepostas umas às outras, e de justaposição de novas formações. A sucessão começa porque a crosta terrestre primitiva, formada pelo resfriamento da massa fluida, vai-se fracionando pela ação das forças oceânicas, meteorológicas e químico-atmosféricas, formando-se, assim, massas estratificadas no fundo do mar. Ao emergir, em certos pontos, as matérias do fundo do mar à superfície das águas, Parte destas estratificações se vêm submetidas novamente à ação da chuva, às mudanças térmicas das estações, à ação do hidrogênio e dos ácidos carbônicos da atmosfera; e a essas mesmas influências se acham expostas as massas pétreas fundidas e logo depois esfriadas que, brotando do seio da terra, perfuram a crosta terrestre, Durante milhares de séculos vão se formando, dessa forma, novas e novas camadas que, por sua vez, são novamente destruídas em sua maior Parte e, algumas vezes, são utilizadas como matéria para a formação de outras novas camadas. Mas o resultado é sempre positivo em qualquer hipótese: a formação de um solo onde se misturam os mais diversos elementos químicos num estado de pulverização mecânica, que permite o desenvolvimento da mais extensa e variada vegetação.

Com as matemáticas ocorre exatamente o mesmo fato. Tomemos uma qualquer grandeza algébrica, por exemplo a. Se a negarmos, teremos -a (menos a). Se negarmos esta negação, multiplicando -a por -a, teremos +a2, isto é, a grandeza positiva da qual partimos, mas num grau superior elevada à segunda potência. Mas aqui não nos interessa que a este resultado (a2) se possa chegar multiplicando a grandeza positiva a por si mesma, pois a negação negada é algo que se acha tão arraigado na grandeza a2, que esta encerra, sempre e de qualquer modo, duas raízes quadradas, a saber: a do a e a do -a. E esta impossibilidade de nos desprendermos da negação negada, da raiz negativa contida no quadrado, toma, nas equações dos quadrados, um caráter de evidência marcante. Entretanto é maior ainda a evidência com que se nos apresenta a negação da negação na análise superior, nessas"somas de grandezas ilimitadamente pequenas" que o próprio Sr. Dühring considera como as supremas operações das matemáticas e que são as que vulgarmente chamamos de cálculo diferencial e integral. Como se desenvolvem essas operações de cálculo Suponhamos, como exemplo, que, num problema qualquer que nos foi dado para resolver, há duas grandezas variáveis x e y, nenhuma das quais pode variar sem que varie também a outra, na proporção que as circunstâncias determinem. Começamos, então, por diferenciar as duas grandezas, x e y isto é, por supor que são tão infinitamente pequenas que desaparecem, comparadas com qualquer outra grandeza real, por pequena que seja, não restando, portanto, de x e y nada mais que sua razão ou proporção, despojada, por assim dizer, de toda a base material, reduzida a uma relação quantitativa da qual se eliminou a quantidadedy/dx, isto é, a razão ou proporção das duas diferenciais de x e y, se reduz, portanto, a 0/0, mas esta fórmula - nada mais é que a expressão da fórmula y/x. Observamos, de passagem, que esta razão ou proporção entre duas grandezas eliminadas, bem como o momento exato em que se eliminam, é uma contradição; mas esta contradição não nos deve desorientar, como não desorientou os matemáticos de dois séculos atrás. Pois bem, que fizemos neste problema, além de negar as grandezas x e y, mas negá-las não nos descartando delas, que é o modo pelo qual a nega a metafísica, mas sim negando-as de um modo que se ajusta à realidade da situação? Substituímos as grandezas x e y pela sua negação, chegando, assim, em nossas fórmulas ou equações a dx e dy. Isso feito, seguimos nossos cálculos operando com dx e dy como grandezas reais, embora sujeitas a certas leis de exceção e ao chegar a um determinado momento, negamos a negação, isto é, integramos a fórmula diferencial, obtendo novamente, em vez de dx e dy, as grandezas reais x e y. E, ao fazê-lo, não tornaremos a nos encontrar no ponto do qual partimos, mas teremos resolvido o problema contra o qual se debateram, em vão, por outros caminhos, a geometria e a álgebra elementares.

O mesmo acontece com a História. Todos os povos civilizados têm em sua origem a propriedade coletiva do solo. E. em todos esses povos, ao penetrar numa determinada fase primitiva, o desenvolvimento da agricultura, a propriedade coletiva converte-se num entrave para a produção. Ao chegar a este momento, a propriedade coletiva se destrói, se nega, convertendo-se, após etapas intermediárias mais ou menos longas, em propriedade privada. Mas, ao chegar a uma fase mais elevada de progresso no desenvolvimento da agricultura, fase essa que se alcança justamente devido à propriedade privada do solo, esta, por sua vez, se converte num obstáculo para a produção, conforme hoje se observa no que se refere à grande e à pequena propriedade. Nestas circunstâncias, surge, por força da necessidade, a aspiração de negar também a propriedade privada e de convertê-la novamente em propriedade coletiva. Mas esta aspiração não tende exatamente a restaurar a primitiva propriedade comunal do solo, mas a implantar uma forma multo mais elevada e mais complexa de propriedade coletiva que, longe de criar uma barreira ao desenvolvimento da produção, deverá acentuá-lo, permitindo-lhe explorar integralmente as descobertas químicas e as invenções mecânicas mais modernas.

Tomemos outro exemplo. A filosofia antiga era uma filosofia materialista, porém primitiva e rudimentar. Esse materialismo não seria capaz de explicar claramente as relações entre o pensamento e a matéria. A necessidade de se chegar a conclusões claras a respeito desse problema, levou à criação da teoria de uma alma separada do corpo e logo depois se passou à afirmação da imortalidade da alma e, por fim, ao monoteísmo. Desse modo, o materialismo primitivo se via negado pelo idealismo. Mas, com o desenvolvimento da filosofia, também o idealismo se tornou insustentável e, por sua vez, teve de ser negado pelo materialismo moderno. Este não é, entretanto, como negação da negação, a mera restauração do materialismo primitivo, mas, pelo contrário, corresponde à incorporação, às bases permanentes deste sistema, de todo o conjunto de pensamentos, que nos provêm de dois milênios de progressos no campo da filosofia e das ciências naturais e da história mesma destes dois milênios. Não se trata já de uma filosofia, mas de uma simples concepção do mundo, de um modo de ver as coisas, que não é levado à conta de uma ciência da ciência, de uma ciência à Parte, mas que tem, pelo contrário, a sua sede e o seu campo de ação em todas elas. Vemos, pois, como a filosofia é, desse modo,"cancelada", isto é,"superada ao mesmo tempo que mantida"; superada, com relação à sua forma; conservada, quanto ao seu conteúdo. Pois ali onde o Sr. Dühring não vê mais que"um jogo de palavras", se esconde, para quem sabe ver as coisas, um conteúdo e uma realidade.

Finalmente, até a teoria rousseauniana da igualdade, que tem apenas um eco apagado e falseado nas futilidades do Sr. Dühring, foi incapaz de se constituir sem os serviços de Parteira da negação da negação hegeliana: e isto, mais de 20 anos antes do nascimento de Hegel. Longe de se envergonhar de tal coisa, essa teoria exibe, quase ostensivamente. em sua primeira versão, a marca de suas origens dialéticas. No estado de natureza e de selvageria, os homens eram iguais; e como Rousseau considera já a linguagem uma deturpação do estado de natureza, tem razão quando aplica o critério da igualdade, assim como, ao mesmo tempo, pretendeu classificar hipoteticamente, como homens-bestas, sob a designação de "alalos" (seres privados de fala). Mas estes homens-bestas, iguais entre si, levavam sobre os outros animais a vantagem de serem animais perfectíveis, de terem capacidade de desenvolvimento; eis onde está, segundo Rousseau, a fonte da desigualdade. Rousseau vê, assim, no nascimento da desigualdade um progresso, mas este progresso é contraditório, pois implica, ao mesmo tempo, num retrocesso."Todos os demais progressos (a partir do estado primitivo da natureza) foram, aparentemente, outros tantos dados para o aperfeiçoamento do indivíduo humano", mas, na realidade, o que o progredia era a decadência da espécie. A elaboração dos metais e o fomento da agricultura foram as duas artes, cuja descoberta provocou esta grande revolução". (Rousseau se refere à transformação das florestas virgens em terras e campos de trabalho, à generalização da miséria e da escravidão, como efeito da implantação da propriedade)."Para o poeta, o ouro e a prata, assim coma para o filósofo o ferro e o trigo, civilizaram o homem e arruinaram o gênero humano". Cada novo avanço da civilização é, por sua vez, um novo avanço da desigualdade. Todas as instituições que nascem nas sociedades, no decorrer do processo de civilização, se convertem no inverso de sua primitiva finalidade."É indiscutível, sendo uma lei fundamental de todo o direito político, que os povos começaram por aceitar príncipes que protegessem a sua liberdade e não que a destruíssem. Entretanto. esses príncipes se converteram, por força da necessidade, em opressores dos povos que deveriam proteger, e levaram essa opressão até um ponto em que a desigualdade, elevada ao máximo, tem que se converter novamente no contrário do que é, isto é, em fonte de igualdade: frente ao déspota, todos os homens são iguais, pois todos se reduzem a zero."Ao chegar a essa fase, o grau máximo de desigualdade é o ponto final que, fechando o ciclo, toca já o ponto inicial do qual partimos: ao chegar a este ponto, todos os homens são iguais, pelo fato de serem nada e, como súditos, têm todos, como única lei, a vontade de seu Senhor". Mas o déspota é Senhor somente quando tem em suas mãos a força e, por isso,"no caso de ser derrotado, não pode se queixar de ter sido derrotado pelo uso da força...""A mesma força que o susteve, o derruba, e tudo se passa, de acordo com uma causa adequada e de acordo com a ordem natural". Significa isso que a desigualdade se transforma novamente em igualdade, mas esta já não é a igualdade rudimentar e primitiva do homem"alado", em estado natural, mas é a liberdade superior do contrato social. Os opressores se convertem em oprimidos. É a negação da negação.

Finalmente, até a teoria rousseauniana da igualdade, que tem apenas um eco apagado e falseado nas futilidades do Sr. Dühring, foi incapaz de se constituir sem os serviços de Parteira da negação da negação hegeliana: e isto, mais de 20 anos antes do nascimento de Hegel. Longe de se envergonhar de tal coisa, essa teoria exibe, quase ostensivamente. em sua primeira versão, a marca de suas origens dialéticas. No estado de natureza e de selvageria, os homens eram iguais; e como Rousseau considera já a linguagem uma deturpação do estado de natureza, tem razão quando aplica o critério da igualdade, assim como, ao mesmo tempo, pretendeu classificar hipoteticamente, como homens-bestas, sob a designação de "alalos" (seres privados de fala). Mas estes homens-bestas, iguais entre si, levavam sobre os outros animais a vantagem de serem animais perfectíveis, de terem capacidade de desenvolvimento; eis onde está, segundo Rousseau, a fonte da desigualdade. Rousseau vê, assim, no nascimento da desigualdade um progresso, mas este progresso é contraditório, pois implica, ao mesmo tempo, num retrocesso."Todos os demais progressos (a partir do estado primitivo da natureza) foram, aparentemente, outros tantos dados para o aperfeiçoamento do indivíduo humano", mas, na realidade, o que o progredia era a decadência da espécie. A elaboração dos metais e o fomento da agricultura foram as duas artes, cuja descoberta provocou esta grande revolução". (Rousseau se refere à transformação das florestas virgens em terras e campos de trabalho, à generalização da miséria e da escravidão, como efeito da implantação da propriedade)."Para o poeta, o ouro e a prata, assim coma para o filósofo o ferro e o trigo, civilizaram o homem e arruinaram o gênero humano". Cada novo avanço da civilização é, por sua vez, um novo avanço da desigualdade. Todas as instituições que nascem nas sociedades, no decorrer do processo de civilização, se convertem no inverso de sua primitiva finalidade."É indiscutível, sendo uma lei fundamental de todo o direito político, que os povos começaram por aceitar príncipes que protegessem a sua liberdade e não que a destruíssem. Entretanto. esses príncipes se converteram, por força da necessidade, em opressores dos povos que deveriam proteger, e levaram essa opressão até um ponto em que a desigualdade, elevada ao máximo, tem que se converter novamente no contrário do que é, isto é, em fonte de igualdade: frente ao déspota, todos os homens são iguais, pois todos se reduzem a zero."Ao chegar a essa fase, o grau máximo de desigualdade é o ponto final que, fechando o ciclo, toca já o ponto inicial do qual partimos: ao chegar a este ponto, todos os homens são iguais, pelo fato de serem nada e, como súditos, têm todos, como única lei, a vontade de seu Senhor". Mas o déspota é Senhor somente quando tem em suas mãos a força e, por isso,"no caso de ser derrotado, não pode se queixar de ter sido derrotado pelo uso da força...""A mesma força que o susteve, o derruba, e tudo se passa, de acordo com uma causa adequada e de acordo com a ordem natural". Significa isso que a desigualdade se transforma novamente em igualdade, mas esta já não é a igualdade rudimentar e primitiva do homem"alado", em estado natural, mas é a liberdade superior do contrato social. Os opressores se convertem em oprimidos. É a negação da negação.

Anti-Dühring by  (Page 165 - 170)

Friedrich Engels: Anti-Dühring (Paperback, Português language, Boitempo Editorial) 5 stars

No ano em que se completam doze décadas da morte de Friedrich Engels (1820-1895), a …

Já tivemos ocasião de conhecer várias aplicações do método do Sr. Dühring. Consiste ele em analisar um determinado grupo de objetos do conhecimento, em seus pretendidos elementos simples, aplicando a estes elementos uns tantos axiomas não menos simples, considerados evidentes pelo autor, para, em seguida, operar com os resultados assim obtidos. Do mesmo modo, os problemas encontrados no campo da vida social, "devem ser resolvidos, axiomaticamente, pela comparação com os diversos esquemas simples e fundamentais, exatamente como se se tratasse de simples... esquemas fundamentais das matemáticas". Assim, a aplicação do método matemático à história, à moral e ao direito, deverá nos garantir, também aqui, a certeza matemática na verdade dos resultados obtidos, imprimindo-se-lhes o selo de verdades autenticamente imutáveis.

Na realidade, não é mais do que um novo rodeio do velho e favorito método ideológico, também chamado apriorístico, que consiste em estabelecer e provar as propriedades de um objeto, não partindo do próprio objeto, mas derivando-as do conceito que dele formamos. A primeira coisa a fazer, é converter o objeto num conceito desse objeto; em segundo lugar, não é preciso mais que inverter a ordem das coisas e medir o objeto pela sua imagem, o conceito. Não é, pois, o conceito que se deve ajustar ao objeto, mas este é que se deve ajustar àquele. Nas elucubrações do Sr. Dühring, são os elementos simples, últimas abstrações a que se pode chegar, que desempenham o papel de conceitos, mas isso em nada modifica os termos do problema, pois esses elementos simples podem ter, na melhor das hipóteses, um caráter puramente conceitual. Como vemos, a"filosofia da realidade" também aqui não é mais que uma pura ideologia, ou seja, uma realidade que é deduzida, não de si mesma, mas da idéia.

Pois bem, se o ideólogo quer construir a moral e o direito, não baseado na realidade das condições sociais em que vivem os homens que o rodeiam, mas partindo do conceito"da sociedade", ou seja, daquilo que ele chama elementos simples, com que materiais conta ele para uma tal tarefa de construção? Com duas classes de materiais, evidentemente: a primeira, os escassos vestígios de qualquer conteúdo real que possam existir ainda naquelas abstrações que servem de base à construção, e uma segunda classe, que é o conteúdo que carrega o nosso ideólogo, e que ele retira de sua própria consciência. Em sua maior Parte, intuições sobre moral e direito, que são uma expressão, mais ou menos adequada - positiva ou negativa, favorável ou não - das condições sociais e políticas em que ele vive. Talvez, além dessas intuições, possam encontrar-se idéias tomadas da literatura sobre estes problemas e, por casualidade, em último lugar, uma série de figurações pessoais. O que quer que faça o nosso ideólogo, colocando-se onde quer que seja, o resultado será que a realidade histórica, que ele expulsa pela porta, volta a entrar pela janela, e, quando acredita estar construindo uma teoria da moral e do direito, para todos os tempos, e para todos os mundos, o que na realidade está fazendo é esboçar uma imagem caricatural, - arrancada de sua base real, invertida como se num espelho côncavo - das correntes conservadoras ou revolucionárias de seu tempo.

Anti-Dühring by  (Page 126 - 127)

Friedrich Engels: Anti-Dühring (Paperback, Português language, Boitempo Editorial) 5 stars

No ano em que se completam doze décadas da morte de Friedrich Engels (1820-1895), a …

Assim, verificando que as três classes que constituem a sociedade moderna, que são a aristocracia feudal, a burguesia e o proletariado, possuem cada uma a sua moral particular, teremos, necessariamente, de concluir, que os homens, consciente ou inconscientemente, fazem derivar suas idéias morais, em última análise, das condições práticas em que se baseia a sua situação de classe, ou seja, das condições econômicas em que produzem e trocam os seus produtos.

Anti-Dühring by  (Page 125)

Friedrich Engels: Anti-Dühring (Paperback, Português language, Boitempo Editorial) 5 stars

No ano em que se completam doze décadas da morte de Friedrich Engels (1820-1895), a …

Darwin trouxera de suas viagens científicas a idéia de que as espécies vegetais e animais, longe de serem permanentes, são variáveis. Para continuar, já na Inglaterra, a trabalhar essa idéia, o campo mais favorável que se lhe oferecia era o da experimentação em animais e plantas. Ora, a Inglaterra é justamente a terra clássica destas experiências. Os resultados obtidos nesse terreno em outros países, - a Alemanha, por exemplo - estão longe de atingir os que se têm conseguido na Inglaterra. De mais a mais, os grandes sucessos, neste ramo, nestes últimos cem anos, pertencem à Inglaterra, e a comprovação dos fatos oferece poucas dificuldades. Darwin descobriu, assim, que, a experimentação havia artificialmente provocado em animais e em plantas da mesma espécie diferenças maiores que as encontradas entre as espécies geralmente conhecidas como distintas. Provava-se, assim. de um lado, a variabilidade relativa das espécies e, de outro, a possibilidade da existência de antepassados comuns de seres com caracteres específicos e diferentes. Darwin procura saber, então, se não haverá na natureza causas que, de modo geral, sem a intenção consciente do criador, produziram, nos organismos vivos, mudanças semelhantes às que o tratamento artificial provoca. Essas causas, ele as encontrou na desproporção entre o número formidável dos germes criados pela natureza e o pequeno número de organismos que chegam a se desenvolver. Mas, como cada germe tende a se desenvolver, resulta dessa desproporção necessariamente uma luta pela existência, que se manifesta não só sob uma forma direta e física, mediante batalhas, em que uns organismos morrem devorados por outros, mas também, mesmo nas plantas, sob a forma de luta pelo espaço e pela luz. É evidente que nessa luta os indivíduos que têm maiores possibilidades de atingir à maturidade e se perpetuar são aqueles que possuem alguma particularidade individual, por mais insignificante que seja, vantajosa na luta pela existência. Dai resulta que essas particularidades individuais tendem a transmitir-se hereditariamente e, quando se encontram em vários indivíduos da mesma espécie, tendem a acentuar-se, pela hereditariedade acumulativa; quanto aos indivíduos que não possuem tais particularidades, sucumbem mais facilmente na luta pela existência e pouco a pouco desaparecem. Dessa maneira, as espécies se transformam, pela seleção natural, pela sobrevivência dos mais aptos.

Anti-Dühring by  (Page 98 - 99)

Friedrich Engels: Anti-Dühring (Paperback, Português language, Boitempo Editorial) 5 stars

No ano em que se completam doze décadas da morte de Friedrich Engels (1820-1895), a …

O mais cômico nessa história é que o Sr. Dühring, para provar a não existência de Deus por meio do conceito do ser, lança mão da prova ontológica da existência de Deus. Diz essa prova: quando pensamos em Deus, nós o concebemos como a soma de todas as perfeições. Ora, a soma de todas as perfeições implica, antes de tudo, na existência, pois um ser inexistente é necessariamente imperfeito. Devemos, pois, incluir a existência no número das perfeições de Deus. Logo, necessariamente, Deus existe, É esse, tal qual, o raciocínio do Sr. Dühring; quando ideamos o ser, ideamo-lo como conceito uno. O que se compreende num só conceito é uno. O que existe não corresponderia, portanto, ao seu conceito se não constituísse uma unidade; Deus, portanto, não existe, etc.

Anti-Dühring by  (Page 74)

Friedrich Engels: Anti-Dühring (Paperback, Português language, Boitempo Editorial) 5 stars

No ano em que se completam doze décadas da morte de Friedrich Engels (1820-1895), a …

Para o metafísico, as coisas e suas imagens no pensamento, os conceitos, são objetos isolados de investigação, objetos fixos, imóveis, observados um após o outro, cada qual de per si, como algo determinado e perene. O metafísico pensa em toda uma série de antíteses desconexas: para ele, há apenas o sim e o não e, quando sai desses moldes, encontra somente uma fonte de transtornos e confusão. Para ele, uma coisa existe ou não existe, Não concebe que essa coisa seja, ao mesmo tempo, o que é uma, outra coisa distinta. Ambas se excluem de modo absoluto, positiva e negativamente, causa e efeito se revestem da forma de uma antítese rígida. A primeira vista, esse método especulativo parece-nos extraordinariamente plausível, porque é o do chamado senso comum. Mas o verdadeiro senso comum, personagem bastante respeitável dentro de portas fechadas, entre as quatro paredes de sua casa, vive peripécias verdadeiramente maravilhosas, quando se arrisca pelos amplos campos da investigação. E o método do pensamento metafísico, por justo e necessário que seja em vastas zonas do pensamento, mais ou menos extensas, de acordo com a natureza do objeto de que se trata, tropeça sempre, cedo ou tarde, com uma barreira que, franqueada, faz com que ele se torne um método unilateral, limitado, abstrato; perde-se em contradições insolúveis, uma vez que, absorvido pelos objetos concretos, não consegue enxergar as suas relações. Preocupado com sua própria existência, não reflete sobre sua gênese e sua caducidade; concentrado em suas condições estáticas, não percebe a sua dinâmica; obcecado pelas árvores não consegue ver o bosque. Na realidade de cada dia, sabemos, por exemplo, e disso podemos dizer ter toda a certeza, se um animal existe ou não. Mas, se investigarmos mais detalhadamente, veremos que o problema pode complicar-se, e de fato se complica às vezes consideravelmente, como não o ignoram os juristas que, em vão, se atormentam para descobrir um limite nacional, a partir do qual deve ser considerado como um assassinato a morte de um feto no útero materno. Tampouco é fácil determinar fixamente o momento da morte, uma vez que a fisiologia demonstrou que a morte não constitui um acontecimento automático, instantâneo, mas faz Parte de um longo processo. Do mesmo modo, pode-se afirmar que todo o ser orgânico é, no mesmo momento, ele mesmo e um outro. Surpreendido em qualquer instante, estará assimilando materiais absorvidos do exterior e eliminando outros de seu seio. Em qualquer momento que o observarmos, veremos que em seu organismo morrem umas células e nascem outras. E, no transcurso de um período mais ou menos longo, a matéria de que está formado se renova radicalmente e novos átomos de matéria ocupam o lugar dos antigos, donde se pode concluir que todo o ser orgânico é, ao mesmo tempo, o que é e um outro. Mesmo assim, se observarmos as coisas detidamente, veremos que os dois pólos de uma antítese, o positivo e o negativo, são antitéticos e que, apesar de todo seu antagonismo eles se completam e se articulam reciprocamente. E vemos, também, que a causa e o efeito são representações que só vigoram como tais na sua aplicação ao caso concreto, mas que, situando o fato concreto em suas perspectivas gerais. articulado com a imagem total do universo, se diluem na idéia de uma trama universal de ações recíprocas, onde as causas e os efeitos trocam constantemente de lugar e o que, antes, era causa, toma, logo depois, o papel de efeito e vice-versa.

Anti-Dühring by  (Page 50 - 51)

Etienne Gilson: O tomismo (Paperback, Português language, WMF Martins Fontes) No rating

A obra O tomismo – Introdução à filosofia de Santo Tomás de Aquino, de Étienne …

A Suma de teologia expõe a demonstração sob a forma que segue. E certo, e nós o constatamos pelos sentidos, que há movimento no mundo. Ora, tudo o que se move é movido por algo. Nada, com efeito, é movido a não ser se está em potência com relação àquilo para o que é movido; e, ao contrário, nada move a não ser que esteja em ato. Afinal, mover algo é fazê-lo passar da potência ao ato. Ora, algo não pode ser levado da potência ao ato senão por um ente em ato, assim, é o quente em ato (por exemplo, o fogo) que torna quente em ato a madeira que só era quente em potência; fazendo-a queimar, move-a e a altera. Mas não é possível que o mesmo ente esteja, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, em ato e em potência. Assim, o quente em ato não pode ser ao mesmo tempo frio em ato, mas apenas frio em potência. É, portanto, impossível que algo seja, da mesma maneira e sob o mesmo aspecto, motor e movido, quer dizer, que ele se mova a si mesmo. Por ai vemos que tudo o que se move é movido por algum outro. Se, porém, aquilo pelo que algo é movido está ele mesmo em movimento, é porque ele é movido por sua vez por algum outro motor, o qual é movido por outro, e assim por diante. Mas não se pode recuar aqui até o infinito, porque não haveria, então, primeiro motor nem, por conseguinte, nenhum motor, visto que um motor segundo não move a não ser que um primeiro o mova, tal como o bastão que não move senão porque a mão imprime-lhe movimento. É, portanto, necessário, para explicar o movimento, recuar até um primeiro motor ao qual nada mova, quer dizer, Deus.

O tomismo by 

Etienne Gilson: O tomismo (Paperback, Português language, WMF Martins Fontes) No rating

A obra O tomismo – Introdução à filosofia de Santo Tomás de Aquino, de Étienne …

As teses às quais Santo Tomás opõe-se já nos são conhecidas, mas devemos precisar o sentido da refutação que ele lhes impõe. Sua objeção fundamental concentra-se nisto: todos os argumentos em favor da evidência de Deus repousam sobre um único e mesmo erro, qual seja, o de tomar por Deus aquilo que não passa de um efeito causado por Deus. Por exemplo, admitamos com João Damasceno que há em nós um conhecimento natural da existência de Deus; esse conhecimento não será em nós mais do que um efeito de Deus, ou sua imagem gravada em nosso pensamento, mas uma demonstração será necessária para dai inferir que Deus existe. Se se diz, com os agostinianos, que Deus é imediatamente cognoscivel para o intelecto assim como a luz é imediatamente visível para a vista, ou que Deus é mais intimo à alma do que a própria a alma, será necessário responder que os únicos entes direta-mente acessíveis ao nosso conhecimento são as coisas sensíveis. Uma demonstração é, pois, necessária para que a razão ascenda das realidades que lhe são assim dadas na experiência até a realidade de Deus, que não o é Quanto ao argumento de Santo Anselmo, ele comete o mesmo erro. Se se parte do principio segundo o qual há um ser tal que não se pode conceber nada de maior, daí decorre por si só que esse ser existe, mas sua existência só é evidente em virtude da suposição desse princípio. Em outros termos, o argumento resume-se a dizer que não se pode compreender que Deus existe e conceber ao mesmo tempo que ele não existe. Mas é bem possível pensar que não existe um ser tal que não se possa conceber nada de maior. Em suma, a ideia de uma existência não é, em nenhum caso, o equivalente de uma existência. Uma existência é constatada ou inferida, mas não deduzida.

O tomismo by  (Page 61 - 62)

Etienne Gilson: O tomismo (Paperback, Português language, WMF Martins Fontes) No rating

A obra O tomismo – Introdução à filosofia de Santo Tomás de Aquino, de Étienne …

É notável que Platão sempre responda à questão O que é ser? pela descrição de uma certa maneira de ser. Para ele, só há ser lá onde há possibilidade de inteligibilidade Como poderíamos dizer que uma coisa é se não pudéssemos dizer o que ela é? Ora, para que ela seja alguma coisa, é preciso que ela continue a sê-lo. Admitir que uma coisa muda é constatar que o que ela era não é mais e que ela vai tornar-se alguma coisa que ela ainda não é. Como conhecer como sendo aquilo que não cessa de tornar-se outra coisa? As três noções de ser, de inteligibilidade e de imutabilidade são, pois, intimamente ligadas no pensamento de Platão. Só merece o nome ser aquilo que, por continuar sempre o mesmo, é objeto de possível intelecção. "O que é que sempre é e nunca nasce? E o que é que sempre nasce e nunca é?", pergunta Platão no Timeu (27d). Esse mesmo principio permite compreender a resposta de Platão à questão posta pelo Sofista: "O que é ser?". O que permanece constante, nos meandros de sua dialética, é que as expressões einai (ser) e einai ti, einai ti tôn óönton (ser alguma coisa, ser um dos entes) são equivalentes no espirito de Platão. Donde a dificuldade de traduzir o termo ousia. Hesita-se, com razão, em traduzi-lo por essência ou por substância, pois nenhum desses termos faria sentir sua força e medir seu alcance: ousia é aquilo que possui verdadeiramente o ser, porque permanece sempre o que é. Aqui, como alhures, o tò ón platônico define-se por oposição ao to gignómenon, o ser seria o contrário do devir.

Num pensamento em que o ser reduz-se assim à estabilidade da essência, como determinar o que é, para distingui-lo do que não é? Eis aí, responde finalmente o Sofista, o trabalho do dialético". Munido de seu método e olhar fixo no inteligível, ele poderá dizer de cada essência "o que ela é" e, por conseguinte, "que ela é", mas também "o que ela não é e, consequentemente, "que ela não é. A oposição empírica da existência ao nada tende, aqui, a reduzir-se à distinção dialética do mesmo e do outro. Sempre que o dialético define uma essência, ele põe simultaneamente que ela é o que ela é e que ela não é aquilo que é diferente do que ela é. Nessa perspectiva da essência, as noções de ser e de não ser despem-se, assim, de toda conotação existencial. Como diz o próprio Platão no Sofista: "parece que, quando enunciamos o não ser, isso não equivale a enunciar algo contrário ao ser, mas somente algo outro. O ser e o não ser estão tão longe de opor-se em uma ontologia essencial (tanto quanto ocorre rigorosamente com a existência e o nada em uma ontologia existencial) que eles se reclamam e implicam-se mutuamente. Uma essência só pode ser estabelecida uma vez como ser, pois ela é ela mesma, porém, sendo ela uma vez, pode-se dizer que há um número indefinido de vezes que ela não é, pois ela é outra com relação a todas as outras essências. Se só uma vez a essência mesmo é ser (contra as inúmeras vezes que ela é outro e não ser), então, o ser está tão longe de excluir o não ser que ele não pode estabelecer-se uma só vez sem estabelecer o não ser uma infinidade de vezes. Podemos es-tar seguros de encontrar-nos na tradição do platonismo autêntico quando as noções de existência e de nada são reduzidas às noções puramente essenciais de mesmo e de outro, de eodem et diverso

Tal é precisamente a noção de ser que, graças a Platão, foi herdada por Santo Agostinho. Nele, como em Platão, a oposição existencial radical do ser ao nada apaga-se diante da distinção entre o que "é verdadeiramente e o que "não é verdadeiramente" O ser adquire, então, esse valor variável que ele tem sempre numa ontologia das essências. Em sentido pleno, ele se define como o absolutamente imutável, o mesmo e o repouso, por oposição a um não ser concebido como o mutável, o outro e o movimento puro. Entre o imutável puro e a duração pura escalonam-se todos os entes dos quais não poderíamos dizer nem que eles não são absolutamente (pois participam de alguma essência estável) nem que eles "são verdadeiramente" (pois nascem e perecem). Ora, nascer é passar do não ser ao ser, como perecer é passar do ser ao não ser, por toda parte onde há não ser, igualmente falta ser¹ Situamo-nos, pois, claramente, no plano do vere esse (ser verdadeiramente), no qual o ser é um valor variável que se mede pela estabilidade da essência. Se Deus, ai, deve ser estabelecido como princípio de tudo, é porque ele é no grau supremo, vis to ser supremamente imutável"; inversamente, tudo o que é supremamente imutável é em grau supremo e é Deus. A verdade é assim, ela que não poderia mudar, pois é necessária e eterna. Avançamos, então, no ser ao mesmo tempo em que avançamos no imutável e alcançamos simultaneamente em Deus o grau supremo de ambos. Só Deus é o ser supremo, porque, sendo a totalidade estável do ser, não pode mudar nem para perder nem para ganhar algo: "ele é sumamente, pois nada perde nem nada ganha por nenhuma mutabilidade"

O tomismo by  (Page 54 - 55)

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A obra O tomismo – Introdução à filosofia de Santo Tomás de Aquino, de Étienne …

A primeira noção a definir é a de revelado. Para alcançarmos sua nature-za, é, com efeito, formalissime (de maneira maximamente formal) que con-vém encará-la. Tal como o concebe Santo Tomás, o revelatum corresponde unicamente aquilo cuja essência é a de ser revelado, porque ele não pode tor-nar-se cognoscivel para nós senão por revelação. Não nos engajemos, portan-to, para definir o revelatum, em uma pesquisa empírica sobre o que Deus, de fato, julgou bom revelar aos humanos. O que constitui o revelado como tal não é o fato de que foi revelado, mas de que exige ser revelado para ser conhe-cido. Assim concebido, o revelado é todo conhecimento sobre Deus que ultra-passa o poder da razão humana. É possível, aliás, que Deus revele-nos conhe-cimentos acessíveis à razão, mas, precisamente porque não são inacessíveis à luz natural do entendimento, esses conhecimentos não concernem ao "reve-lado". De fato, Deus pode revelá-los, mas, de direito, não pertence à essência deles não ser cognosciveis senão por via de revelação.

Assim, Deus pode ter considerado bom revelar conhecimentos que não concernem ao revelado. Para definir a classe de conhecimentos que, de fato, são assim dispostos ao alcance de nossa razão, requer-se uma nova noção, mas bem concreta dessa vez e flexível o suficiente para abraçar uma plurali-dade de fatos heterogéneos. Sem dúvida, essa noção terá, ela também, sua unidade. Se ela não fosse una, simplesmente não seria. No lugar da unidade estrita de uma essência, teremos o que a imita melhor, a unidade de uma or-dem. Tal é precisamente a noção de revelabile, o revelável, que devemos ago-ra definir.

Ora, não chegaremos a essa noção senão com a condição de, ao contrá-rio, proceder empiricamente, com base nos fatos que ela deve unificar. Esses fatos, aos quais nossa nova noção deve vestir sob medida, são todos os que compõem esse evento extremamente complexo que se nomeia Revelação. Trata-se sem dúvida aqui de um evento; portanto, de um fato de ordem exis-tencial que se refere mais à faculdade de julgar do que à definição propria-mente dita. Cernir a priori seus contornos, por meio de um conceito abstrato seria algo impossível, mas podemos construir progressivamente sua noção com base em julgamentos de existência sobre os dados de fato que se trata de unificar. Com efeito, a Revelação refere-se essencialmente ao revelado, mas inclui muitas outras coisas. Porque a Revelação as inclui, elas concernem a ela em algum grau. Tomadas em conjunto, elas formarão, portanto, uma classe de fatos sob a jurisdição da mesma noção, cuja unidade será constituída pela relação comum delas com o ato divino de revelar.

Tomada em si mesma, uma revelação é um ato que, como qualquer ato, visa certo fim. No caso da Revelação, trata-se de tornar possível a salvação do ser humano. Para este, a salvação consiste no fim a ser alcançado. Ele não pode alcançá-lo sem conhecê-lo. Ora, esse fim é Deus, isto é, um objeto que ultrapassa infinitamente o conhecimento natural. Para que o ser humano pudesse obter sua salvação, era preciso, então, que Deus lhe revelasse conhecimentos que ultrapassem os limites da razão. O conjunto desses conheci-mentos é o que se nomeia ciência sagrada, assim nomeada do modo como falamos de história sagrada: sacra doctrina (ensino sagrado), sacra scientia (ciência sagrada) ou theologia (teologia). O problema, para nós, está em saber qual é o conteúdo dessa ciência.

Da maneira como Santo Tomás a concebe, a Revelação apresenta-se como uma operação de certo modo hierárquica, tomando-se esse termo no sentido que lhe havia dado Dionisio, o Pseudoareopagita: a verdade sobrenatural não chega a nós senão como um rio que desceria, por assim dizer, em cascatas, partindo de Deus, que é sua fonte, descendo aos anjos, que a recebem por primeiro segundo a ordem das hierarquias angélicas, e chegando aos humanos, quando ela atinge inicialmente os apóstolos e os profetas, derramando-se em seguida na multidão daqueles que a aceitam pela fé. A ciên-cia sagrada ou teologia tem, então, por fundamento, a fé em uma revelação feita por Deus àqueles que nomeamos os apóstolos e os profetas. Essa revelação confere-lhes autoridade divina, portanto inatacável, e a teologia repousa sobre nossa fé na autoridade deles.

O tomismo by  (Page 17 - 18)

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A obra O tomismo – Introdução à filosofia de Santo Tomás de Aquino, de Étienne …

Se nos atemos às partes da filosofia nas quais Santo Tomás mostra-se mais original, constatamos que elas são, em geral, limítrofes do território próprio da teologia. Chamá-las de "limítrofes” não é dizer o bastante; elas ai estão ancoradas. Não somente não tentamos nunca expor sua filosofia sem acionar livremente suas obras teológicas, mas é frequentemente nelas que buscamos a fórmula definitiva de seu pensamento a respeito da existência de Deus e seus atributos, da criação, da natureza humana e das regras da vida moral. Os Comentários de Santo Tomás a Aristóteles são-nos documentos muito preciosos, cuja perda seria deplorável. Todavia, se eles tivessem sido todos perdidos, as duas Sumas permitiriam ainda conhecer o que há de mais pessoal e de mais profundo em sua filosofia. Caso fossem as obras teológicas de Santo Tomás que tivessem sido perdidas e se os comentários a Aristóteles tivessem permanecido, estaríamos nós suficientemente bem informados sobre sua filosofia? Doutor cristão, Santo Tomás colheu de todos os lados elementos para levar a bom termo a tarefa que havia assumido. Para elaborar sua obra, ele extraiu tudo o que pôde utilizar de Aristóteles, mas também de Dionisio, o Pseudoareopagita, do Livro das causas, de Santo Agostinho, de Boécio, de Avicena, de Averróis. Não se pode, portanto, esquecer que ele não estudou Aristóteles senão para melhor preparar uma obra que, acima de tudo, era uma teologia. Donde ser possível estabelecer essa regra geral: as partes da filosofia tomista foram tanto mais profundamente elaboradas quanto mais elas interessavam diretamente à sua teologia. A teologia de Santo Tomás é a de um filósofo, mas sua filosofia é a de uma pessoa santa.

O tomismo by  (Page 13 - 14)