Reviews and Comments

Marte

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Peter Norton: Autonorama (Paperback, português language, 2023, Autonomia Literária)

“As bases foram lançadas para a autonomia total”, anunciou Elon Musk em 2016, quando garantiu …

Ilusões tecnológicas e outras trapaças da indústria automotiva, mas não só dela, do capitalismo

Autonorama é um livro feito para quem tem raiva da carrocracia, mas sem advogar pelo fim completo dos carros. Mais especificamente, Peter Norton revive a saga histórica dos Futuramas I e II, ligados à montadora automobilística General Motors nos EUA, e estende a nomenclatura "Futurama" a fenômenos das décadas de 1990 e 2010 como Futurama III e Futurama IV (Autonorama). Longe de ser uma questão somente da General Motors, o automóvel individual é um problema de urbanismo e saúde pública nos EUA. Nem a pior cidade em termos de carros no Brasil, São Paulo, consegue fazer entender o que é a dependência completa de carro no país inteiro. Norton estabelece quais foram as artimanhas legais articuladas pelos capitalistas automobilistas para que a situação chegasse a esse ponto. O marketing é o cerne do caos capitalista, não a pulsão de avanço. Aqui, o autor dá responsabilidade a todos os que devem …

Drauzio Varella: Estação Carandiru (Paperback, português language, 1999, Companhia das Letras)

Com mais de 7200 presos, a Casa de Detenção de São Paulo é o maior …

Sociologia em seu estado mais cru

Poucos médicos que eu conheço merecem alguma menção especial em relação ao seu trabalho ou sua atuação política. Drauzio Varella certamente é um deles. Drauzio escreveu alguns livros sobre sua atuação em presídios, especialmente no Carandiru [Casa de Detenção de São Paulo], um presídio na cidade de São Paulo desativado em 2002. Estação Carandiru, claro, é um desses livros.

Comprei esse livro numa visita aleatória a um sebo e foi uma ótima aquisição. Estação Carandiru foi lançado em 1999, antes mesmo do fechamento da Casa de Detenção, e tem as marcas temporais (não somente físicas, no caso da minha impressão de 2000) de 25 anos atrás. Por exemplo, ao tratar das travestis detentas, Drauzio mistura os pronomes femininos e masculinos. Hoje em dia, esse erro não passaria batido, e eu não acho que Drauzio o cometeria de qualquer forma.

O livro não toma um partido explícito de nenhuma das partes …

reviewed Libras? Que língua é essa? by Audrei Gesser (Estratégias de ensino, #14)

Audrei Gesser: Libras? Que língua é essa? (Paperback, Portuguese language, 2009, Parábola)

Ainda é preciso insistir no fato de que a Libras é língua? Desde a década …

Uma introdução à LIBRAS e à cultura surda

O livro de Audrei Gesser, ouvinte pesquisador e imerso no contexto da cultura surda, destina-se principalmente a ouvintes leigos sobre a realidade da pessoa surda no Brasil, com o intuito de servir de introdução a esse universo.

É dividido em três partes: "A língua de sinais", "O surdo" e "A surdez". A primeira parte é essencial para o leitor desmistificar erros no senso comum do que seria a LIBRAS e as línguas de sinais como um todo. Em seguida, os outros dois capítulos abordam aspectos da cultura surda e as disputas políticas em relação ao paradigma médico contra o modelo social da deficiência.

Senti falta no livro de referências a uma parte relevante da comunidade de deficientes auditivos que recusa a identificação com a cultura surda e insiste em ser chamada de deficiente auditivo, procurando compensações como aparelhos auriculares, entre outros. Existe essa tensão entre deficientes auditivos e surdos, e …

Lalo Watanabe Minto: O Avesso das Evidências (Paperback, português language, 2023, Lutas Anticapital)

Educação baseada em evidências se tornou uma espécie de slogan que, crescentemente, vem dando forma …

Educação Baseada em Evidências: "repetitiva, insistente, monótona"

Sou suspeitíssima para falar do Lalo, o autor do livro, porque ele foi meu orientador de iniciação científica e é uma excelente pessoa. Assim como o faz em suas aulas, no livro ele coloca nome nos bois sem medo.

A Educação Baseada em Evidências (EBE) é, para o autor, um movimento não epistemológico de disputa científica e sim um movimento político entranhado no modus operandi neoliberal. Lalo nos mostra como a EBE bebe da teoria do capital humano diretamente, renomeando e acelerando processos que já são velhos conhecidos de professores, gestores educacionais e pesquisadores críticos. Mais do que propor uma abordagem científica da educação, os proponentes da EBE descartam e subjugam as já estabelecidas linhas de pesquisa em faculdades de educação como anti-científicas e pseudocientíficas. Além disso, nutrem-se de lógicas circulares que buscam, a partir de dados matemáticos e estatísticos, justificar as premissas que eles mesmos julgaram corretas de início. …

reviewed Autismo by Valério Romão (Paternidades falhadas, #1)

Valério Romão: Autismo (Hardcover, português language, 2018, Tinta da China Brasil)

“Eu acho que o Henrique é Faltava só uma palavra, era o parto ao contrário, …

Essa não é uma história de superação

Content warning Contém spoilers substanciais e sobre o final do livro, aborda temas muito pesados de capacitismo

reviewed Admirável Mundo Novo by Aldous Huxley (Folha Grandes Nomes da Literatura, #3)

Aldous Huxley: Admirável Mundo Novo (Hardcover, português language, 2016, Folha de S. Paulo)

"Admirável Mundo Novo", do escritor britânico Aldous Huxley (1894-1963), lançado em 1932, exerceu uma influência …

Sofri de CED, "Criei Expectativas Demais"

Esse livro é um clássico do gênero ficção científica distópica, e já em 1932 já previa algumas desgraças em nome do progresso científico. Aliás, se tem uma coisa em que o livro acerta, é na crítica implícita (ou até mesmo explícita) sobre ciência e o progresso obstinado. O dilema moral principal do livro, escrito mesmo antes da Segunda Guerra ou da ameaça de caos nuclear da Guerra Fria, é: ser livre e sofrer, mas poder apreciar a arte e a liberdade e tudo o que implica, ou ser condicionado, manipulado e viver em uma sociedade de castas, mas sem sofrimento e uma vida relativamente digna e feliz (mesmo considerando as castas)?

Na minha opinião, esse dilema moral é realmente interessante e se prova atual mesmo 92 anos após o lançamento do livro. O que eu não gostei foi:

1) A narrativa: achei chata, não me interessou, os personagens não são …

Isabelle Stengers, Bernadette Bensaude-Vincent: História da Química (Paperback, português language, 2023, Editora da Unicamp)

O estilo narrativo empregado pelas autoras não decepcionará o leitor de livros de história das …

História da Química para químicos

Quem me apresentou esse livro, por conhecer a autora Isabelle Stengers, foi meu companheiro que é antropólogo. Ele ficou particularmente interessado ao ver que a Editora da Unicamp publicou a primeira tradução em PT-BR (ou, carinhosamente, brasileiro) desse livro lançado inicialmente em 1993 em francês.

Comecei a ler particularmente interessada em um tópico da história da química: o desenvolvimento do que chamamos de modelos atômicos, e as controvérsias em torno do átomo desde o marco do "átomo de Dalton" (1808). As autoras abordam essas questões, mas um pouco menos do que eu gostaria. O átomo recebe particular atenção em dois capítulos: 17 ("A análise em face dos átomos") e 30 ("Dos átomos ao átomo"). Um dos tópicos que mais me interessa, a descoberta do elétron por parte de Thomson (1897), recebeu pouca atenção das autoras. Nesse aspecto, o desenvolvimento da história do átomo como uma narrativa surrupiada e controlada pela …

Фёдор Достоевский: Crime e Castigo (Paperback, português language, 2007, L&PM Pocket)

Um dos romances mais importantes, mais lidos e festejados da literatura, Crime e castigo (publicado …

"Crime é não ler essa obra, castigo é terminar de ler ela"

Cito uma pessoa querida do Mastodon fazendo um trocadilho com o título da obra de Dostoiévski ainda no título da resenha. E o faço porque na minha opinião ela está certa: é um crime não ler Crime e Castigo, pela sua relevância histórica e excelente construção narrativa e literária. Castigo foi terminar de ler um livro de 600 páginas, de bolso ainda, com tipografia minúscula e linhas apertadas.

Penso que, se tivesse umas 100 páginas a menos (e olha que aí seriam 500 páginas nessa edição da L&PM que avalio, não exatamente um livro pequeno), a história teria rolado um pouco menos enfadonha em alguns pontos. Mas Dostoiévski "macetou" aqui, como dizem os jovens. É um romance que marca muito bem o pensamento conservador russo e a grande influência do cristianismo ortodoxo russo no pensamento do autor. Aqui, ele articula um crime como o caso perfeito para avaliar os limites …

Primo Levi: Os afogados e os sobreviventes (Paperback, português language, 2016, Paz e Terra)

Primo Levi retoma sua reflexão sobre o campo de extermínio nazista 40 anos depois de …

"Não se deve esquecer que esta é uma guerra sem fim"

"Os afogados e os sobreviventes" é o último livro escrito por Primo Levi antes de sua morte em 1987. Para aqueles que não ouviram falar de Primo Levi, julgo que poucos, ele foi um químico italiano e judeu, prisioneiro de Auschwitz em 1944 e sobrevivente. Levi escreveu extensivamente sobre sua "experiência" nos Lager nazistas, sendo sua primeira obra "É isto um homem?".

Neste livro, Levi faz mais uma reminiscência sobre a natureza humana e os horrores do Holocausto, focando em assuntos como memória, comunicação, violência e estereótipos.

Há pouco que eu possa explorar sobre o assunto nazismo sendo uma pessoa leiga, mas o livro de Levi me fez pensar sobre certos tópicos. Em especial, uma citação ressoou pessoalmente: "É dever do homem justo declarar a guerra a todo privilégio não merecido, mas não se deve esquecer que esta é uma guerra sem fim."

Tenho, até agora, uma orientação anarquista, que, …

Maia Kobabe: Gênero Queer (GraphicNovel, inglês language, 2023, Tinta da China Brasil)

A premiada HQ que narra de modo sensível a transição de gênero de Maia Kobabe. …

O livro mais banido de escolas nos EUA pelo terceiro ano seguido é, claro, injustiçado

Gênero queer, de Maia Kobabe, é uma história em quadrinhos voltada principalmente para aquelus 1) interessades em aprender mais sobre uma perspectiva de ser não-binárie, enquanto aliades 2) interessades em investigar uma perspectiva não-binárie porque estão considerando o serem elus própries. Portanto, sim, a autobiografia/memória é bastante didática, o que pode ser meio chato se você já é uma pessoa iniciada no assunto ou se está procurando algo mais literário ou profundo. Tendo isso em vista, é uma pena que tenha sido frequentemente banido de escolas nos EUA, porque é justamente o tipo de literatura que adolescentes gênero não-conformes e sues amigues gostariam de acessar.

Lendo com 25 anos, e já conhecendo algumas coisas dos debates de não-binariedade de gênero, eu achei o livro um pouco didático e bobo demais. Até meio simplista e muito fofo. Acho que já estou preparada para leituras um pouco mais maduras e adultas. Inclusive, …

Vinciane Despret: O que diriam os animais? (Paperback, português language, 2021, Ubu)

Os macacos sabem mesmo macaquear? Os animais podem se revoltar? Qual o interesse dos ratos …

"O que diriam os animais?" é sobre o que dizem os [animais] humanos

Excelente livro da filósofa Vinciane Despret sobre a relação entre [animais] humanos e animais, sobre epistemologia da ciência e antropocentrismo. Com toques de sarcasmo e cutucando onde precisa ser cutucado, Despret é incisiva nas críticas a áreas pouquíssimo criativas como a sociobiologia. Por muito tempo, o tal do método científico vem tentado entender animais do ponto de vista antropocêntrico e Ocidental, como se estes fossem máquinas biológicas movidas pela passagem dos genes saudáveis, de acordo com a teoria da evolução. Isso despindo-os de agência, desejos, cognição, capacidade de buscar prazer, entre outros. E, na tentativa de denunciar os abusos praticados por esse método, muitos ativistas tratam os animais como se fossem vítimas, o que os despe dessas características, também. Despret aborda todos esses assuntos e faz o leitor questionar-se sobre as certezas da ciência (por exemplo, que lobos se organizam entre alfas, betas e ômegas... será?), sobre qual o limite …

Manuel Antônio de Almeida: Memórias de um Sargento de Milícias (Paperback, português language, 2010, Martin Claret)

Com um único romance que escreveu aos 21 anos, Memórias de um Sargento de Milícias, …

Parecia mais legal nas minhas memórias (sem trocadilhos)

Se eu não me engano, Memórias de um Sargento de Milícias (que eu insisto em chamar de Memórias Póstumas de um Sargento de Milícias na minha cabeça, admito) foi um dos livros da lista da Fuvest no meu ano de ingresso (aliás, Memórias Póstumas de Brás Cubas também).

Eu não li o livro na ocasião (admito), mas lembro de uma ou outra coisa das aulas de literatura para o vestibular e na minha cabeça, o livro era mais engraçado e divertido.

A primeira parte do livro fica descrevendo as traquinagens do Leonardinho, o personagem principal, que desde pequeno só quer saber de travessura e vadiagem. Essa parte é particularmente enfadonha, na minha opinião. Depois, passa a descrever a vida jovem-adulta de Leonardinho, que continua a se meter em vadiagem e adora um rabo de saia. Essa parte fica mais interessante e você começa a ansiar pelo desfecho. A questão é …

Alejandro Zambra: A Vida Privada das Árvores (Paperback, portuguese language, 2013, Cosac Naify)

Segundo livro do escritor chileno Alejandro Zambra, 'A vida privada das árvores' é a história …

A vida privada de Julián

A vida privada das árvores é, na verdade, menos sobre árvores e mais sobre Julián, um professor universitário chileno que está desvendando questões sobre sua vida. O enredo é como uma crônica, e se passa no apartamento de Julián enquanto esse cuida de Daniela, sua enteada, enquanto sua mãe Verónica não chega em casa. A partir desse fato -- Verónica ainda não chegou em casa e está atrasada -- Julián confabula milhares de cenários passados e futuros, incluindo a possibilidade de Verónica não voltar mais. O final é bastante aberto, e isso não me deixou muuuuito feliz, mas foi uma leitura agradável e particularmente rápida, perfeita para um domingo nublado.

Paul Verhaeghe: What about Me? (Paperback, english language, 2014, Scribe)

According to current thinking, anyone who fails to succeed must have something wrong with them. …

Comecei amando esse livro. Aí nos 20% finais, o autor estragou tudo

Ponderei por um tempo qual nota daria para esse livro, e durante a leitura minha nota foi de 4 para 5, de 5 para 4 e de 4 para 3, só de raiva. Mas vou manter o 4, e explico o porquê.

Verhaeghe, o autor, é um psicanalista belga. Peguei essa dica de leitura lendo Pussy Riot, o último livro que resenhei aqui. O título me chamou atenção, e Nadya citou Verhaeghe durante a parte de seu livro que fala sobre antipsiquiatria. Dado esse contexto, eu esperava uma parte maior do livro dedicada a destrinchar o DSM-V e criticar ferrenhamente a cultura neoliberal de transformar diagnósticos em identidades -- comunidade autista, estou falando de vocês (nós)! Ele de fato faz isso, mas em uma parte muito pequena que pareceu até meio corrida perto do tamanho do livro.

Colocações de Verhaeghe que eu considero que fazem o livro valer a pena: …

Nadya Tolokonnikova: Um Guia Pussy Riot Para o Ativismo (Paperback, português language, 2019, Ubu)

Feminismo, ativismo, arte, literatura, sistema judicial, sistema penitenciário, antipsiquiatria, resistência, Nadya atravessa todos esses temas …

"É muito mais fácil espiar por baixo da saia de uma mulher que esteja no alto de um pedestal"

Nesse livro, Nadya Tolokonnikova, uma das participantes e fundadoras do grupo Pussy Riot, que utiliza de arte punk para denunciar crimes de Estado na Rússia, relata suas experiências no ativismo. O Pussy Riot ficou conhecido no começo dos anos 2010 por suas ações artísticas irreverentes e destemidas contra a plutocracia putinesca, e Nadya e outras companheiras suas foram presas pelo Estado russo por desobediência civil.

O livro tem formato de guia, e, apesar de eu ter muita preguiça desses manuais de ativismo, senti que aqui esse formato fez sentido. Além de guia, é uma autobiografia. Nadya escreveu o livro originalmente em inglês, que não é sua língua materna, o que ajudou a linguagem a ser simples e direta. Dessa forma, a leitura é para todes, mesmo aqueles que não são muito iniciados no ativismo ou que não têm grandes contextos de ciências sociais e políticas ou filosofia.

São 10 regras …