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Miguel Medeiros

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Han Kang: Atos humanos (Paperback, Portuguese language, 2019, Todavia) No rating

Em maio de 1980, na cidade sul-coreana Gwangju, o exército reprimiu um levante estudantil, causando …

Estou lutando. Luto todos os dias, sozinho. Luto contra a vergonha por ter sobrevivido, por ainda estar vivo. Luto contra o fato de que sou um ser humano. Luto contra o pensamento de que a morte é a única maneira de escapar desse fato. O senhor, ser humano igual a mim, qual resposta poderia me dar?

Atos humanos by 

Han Kang: Atos humanos (Paperback, Portuguese language, 2019, Todavia) No rating

Em maio de 1980, na cidade sul-coreana Gwangju, o exército reprimiu um levante estudantil, causando …

Fiquei sabendo só mais tarde. Os soldados receberam, naquele dia, oitocentas mil balas no total. A população da cidade na época era de quatrocentas mil. Forneceram balas suficientes para cravar a morte duas vezes no corpo de todas as pessoas da cidade. Acredito que havia ordem para se fazer isso, caso acontecesse algum problema. Se tivéssemos deixado as armas na recepção do Docheong e nos retirado, talvez eles tivessem apontado o cano do fuzil para os cidadãos. Penso no sangue que escorria pelas escadas escuras do Docheong naquela madrugada, fazendo literalmente um barulho de correnteza. Cada vez que isso me vem à cabeça, penso que aquilo não foi só a morte deles, eles morreram também por outras pessoas. O sangue de milhares, a morte de milhares.

Atos humanos by 

Eduardo Galeano: As Veias Abertas da América Latina (Paperback, Português language, 2010, L&PM) No rating

Remontando a 1970, sua primeira edição, atualizada em 1977, quando a maioria dos países do …

A apropriação privada da terra, na América Latina, sempre se antecipou ao seu cultivo útil. Os traços mais retrógrados do sistema de posse hoje em vigor não provêm das crises, mas nasceram durante os períodos de maior prosperidade; ao contrário, os períodos de depressão econômica apaziguaram a voracidade dos latifundiários na conquista de novas terras. No Brasil, por exemplo, a decadência do açúcar e o virtual desaparecimento do ouro e dos diamantes tornaram possível, entre 1820 e 1850, uma legislação que assegurava a propriedade da terra a quem a ocupasse e a fizesse produzir. Em 1850, a ascensão do café como novo “produto rei” determinou a sanção da Lei de Terras, cozinhada segundo o paladar de políticos e militares do regime oligárquico para negar a propriedade da terra a quem nela trabalhava, na medida em que iam se abrindo, para o sul e para o oeste, os gigantescos espaços interiores do país. Essa lei “foi reforçada e ratificada desde então por uma copiosíssima legislação que estabelecia a compra como única forma de acesso à terra, e criava um sistema cartorial de registro que tornava quase impraticável ao lavrador a legalização de sua possessão”

As Veias Abertas da América Latina by  (Page 177)

Eduardo Galeano: As Veias Abertas da América Latina (Paperback, Português language, 2010, L&PM) No rating

Remontando a 1970, sua primeira edição, atualizada em 1977, quando a maioria dos países do …

A estrutura do atraso do campo latino-americano opera também como uma estrutura do desperdício: desperdício da força de trabalho, da terra disponível, dos capitais, do produto e, sobretudo, desperdício das esquivas oportunidades históricas de desenvolvimento. O latifúndio e seu parente pobre, o minifúndio, constituem, em quase todos os países latino-americanos, o gargalo da garrafa que estrangula o crescimento agropecuário e o desenvolvimento de toda a economia. O regime da propriedade imprime sua marca no regime da produção: 1,5 por cento dos proprietários agrícolas latino-americanos possui a metade das terras cultiváveis, e a América Latina gasta anualmente mais de 500 milhões de dólares para comprar no estrangeiro alimentos que facilmente poderia produzir em suas imensas e férteis terras. Apenas 5 por cento da superfície total está cultivada: a mais baixa proporção do mundo e, portanto, o maior desperdício[1]. De resto, nas escassas terras cultivadas os rendimentos são muito baixos. E as técnicas modernas de produção, virtual monopólio das grandes empresas agrícolas, em sua maioria estrangeiras, são empregadas de tal modo que em vez de ajudar os solos os envenenam para ganhar o máximo num mínimo de tempo.[2]

O latifúndio integra, às vezes como Rei Sol, uma constelação de poder que, na feliz expressão de Maza Zavala, multiplica os famintos, mas não os pães[3]. Em vez de absorver mão de obra, o latifúndio a expulsa: em 40 anos, os trabalhadores latino-americanos do campo foram reduzidos em mais de 20 por cento. Sobram tecnocratas dispostos a afirmar, aplicando mecanicamente receitas prontas, que este é um índice de progresso: a urbanização acelerada, a migração massiva da população campesina. Os desempregados, que o sistema vomita sem descanso, de fato migram para as cidades, aumentando seus subúrbios. Mas as fábricas, que também segregam desempregados na medida em que se modernizam, não oferecem oportunidades a essa mão de obra excedente e não especializada. Os progressos tecnológicos do campo, quando ocorrem, agravam o problema. Crescem os lucros dos terras-tenentes quando são implementados meios mais modernos de exploração de suas propriedades, mas mais braços resultam inativos e se torna maior a brecha que separa ricos e pobres. A introdução de equipamentos motorizados, por exemplo, elimina mais empregos rurais do que aqueles que cria. Os latino-americanos que produzem os alimentos, em jornadas de sol a sol, normalmente sofrem de desnutrição: seus ganhos são miseráveis, e a renda que o campo gera é gasta nas cidades ou viaja para o exterior. As melhores técnicas para aumentar os magros rendimentos do solo, e que deixam intato o regime de propriedade vigente, ainda que contribuam para o progresso geral, não representam nenhuma bênção para os camponeses. Não aumentam seus salários nem sua participação nas colheitas. O campo irradia pobreza para muitos e riqueza para bem poucos. Os aviões privados sobrevoam os desertos miseráveis, multiplica-se o luxo estéril nos grandes balneários e a Europa ferve de turistas latino-americanos transbordantes de dinheiro, que não cuidam do cultivo de suas terras mas não deixam de cuidar do cultivo de seus espíritos.

As Veias Abertas da América Latina by  (Page 171 - 173)

Eduardo Galeano: As Veias Abertas da América Latina (Paperback, Português language, 2010, L&PM) No rating

Remontando a 1970, sua primeira edição, atualizada em 1977, quando a maioria dos países do …

Na concepção geopolítica do imperialismo, a América Central não é nada mais do que um apêndice natural dos Estados Unidos. Nem mesmo Abraham Lincoln, que também pensou em anexar seus territórios, conseguiu escapar dos preceitos do “destino manifesto” da grande potência em relação às suas áreas contíguas.[1]

Em meados do século passado, o filibusteiro William Walker, que operava em nome dos banqueiros Morgan e Garrison, invadiu a América Central à frente de um bando de assassinos que se autodenominavam “a falange americana dos imortais”. Com o respaldo oficioso do governo dos Estados Unidos, Walker roubou, matou, incendiou e se proclamou, em expedições sucessivas, presidente da Nicarágua, El Salvador e Honduras. Reimplantou a escravidão nos territórios que sofreram sua devastadora ocupação, continuando, assim, a obra filantrópica de seu país nos estados que, pouco antes, tinham sido usurpados ao México.

Em seu regresso foi recebido nos Estados Unidos como herói nacional. Desde então sucederam-se as invasões, as intervenções, os bombardeios, os empréstimos compulsórios e os tratados assinados ao pé do canhão. Em 1912, o presidente William H. Taft afirmava: “Não está longe o dia em que três bandeiras de barras e estrelas vão assinalar em três pontos equidistantes a extensão de nosso território: uma no Polo Norte, outra no Canal do Panamá e a terceira no Polo Sul. Todo o hemisfério, de fato, será nosso, como já é nosso moralmente em virtude de nossa superioridade racial”[2]. Taft dizia que o reto caminho da justiça na política externa dos Estados Unidos “não exclui de modo algum uma ativa intervenção para assegurar às nossas mercadorias e aos nossos capitalistas facilidades para os investimentos lucrativos”. Na mesma época, o ex-presidente Teddy Roosevelt recordava em voz alta sua exitosa amputação da terra da Colômbia: I took the Canal, dizia o flamante Prêmio Nobel da Paz, enquanto contava como havia independentizado o Panamá[3]. A Colômbia receberia pouco depois uma indenização de 25 milhões de dólares: era o preço de um país, nascido para que os Estados Unidos dispusessem de uma via de comunicação entre os dois oceanos.

As empresas se apoderavam de terras, alfândegas, tesouros e governos; os marines desembarcavam em todas as partes para “proteger a vida e os interesses dos cidadãos norte-americanos”, pretexto igual ao que usariam, em 1965, para apagar com água benta o rastro do crime na República Dominicana. A bandeira envolvia outras mercadorias. Em 1935, já aposentado, o comandante Smedley D. Butler, que encabeçou muitas expedições, resumia assim sua atividade: “Passei 33 anos e quatro meses no serviço ativo, como membro da mais ágil força militar deste país: o Corpo de Infantaria da Marinha. Servi em todos os postos, de segundo-tenente a general de divisão. E durante todo esse período passei a maior parte do tempo em funções de pistoleiro de primeira classe para os Grandes Negócios, para Wall Street e para os banqueiros. Em uma palavra: fui um pistoleiro do capitalismo (...). Assim, por exemplo, em 1914 ajudei a fazer com que o México, e especialmente Tampico, fossem uma presa fácil para os interesses dos petroleiros norte-americanos. Ajudei a fazer com que Haiti e Cuba fossem lugares decentes para o retorno de investimentos do National City Bank (...). Em 1909-12, ajudei a purificar a Nicarágua para a casa bancária internacional de Brown Brothers. Em 1916 levei a luz à República Dominicana, em nome dos interesses açucareiros norte-americanos. Em 1903 ajudei a ‘pacificar’ Honduras em benefício das companhias fruticultoras norte-americanas”.

As Veias Abertas da América Latina by  (Page 147 - 149)

Eduardo Galeano: As Veias Abertas da América Latina (Paperback, Português language, 2010, L&PM) No rating

Remontando a 1970, sua primeira edição, atualizada em 1977, quando a maioria dos países do …

O café beneficia muito mais quem consome do que quem o produz. Nos Estados Unidos e na Europa gera rendas, empregos, e mobiliza grandes capitais; na América Latina, paga salários de fome e acentua a deformação econômica dos países postos a seu serviço. Nos Estados Unidos, o café proporciona trabalho a mais de 600 mil pessoas: os norte-americanos que distribuem e vendem o café latino-americano ganham salários infinitamente mais altos do que os brasileiros, colombianos, guatemaltecos, salvadorenhos ou haitianos que semeiam e colhem o grão nas plantações. De outra parte, informa-nos a CEPAL que, por incrível que pareça, o café entorna mais riqueza nas arcas estatais dos países europeus do que a riqueza que deixa em mãos dos países produtores. De fato, “em 1960 e 1961, as cargas fiscais totais impostas pelos países da Comunidade Europeia ao café latino-americano elevaram-se a cerca de 700 milhões de dólares, ao passo que as rendas dos países abastecedores (em termos do valor FOB das mesmas exportações) só alcançaram 600 milhões de dólares”[4]. Os países ricos, pregadores do livre-comércio, aplicam o mais rígido protecionismo contra os países pobres: convertem tudo o que tocam em ouro para eles mesmos e em lata para os demais – incluindo a própria produção dos países subdesenvolvidos. O mercado internacional do café copia de tal modo o desenho de um funil que o Brasil, recentemente, aceitou impor altos impostos às suas exportações de café solúvel para proteger – protecionismo ao contrário – interesses dos fabricantes norte-americanos do mesmo artigo. O café instantâneo produzido no Brasil é mais barato e de melhor qualidade do que o da florescente indústria dos Estados Unidos, mas no regime da livre concorrência, está visto, uns são mais livres do que os outros.

As Veias Abertas da América Latina by  (Page 139 - 140)

Eduardo Galeano: As Veias Abertas da América Latina (Paperback, Português language, 2010, L&PM) No rating

Remontando a 1970, sua primeira edição, atualizada em 1977, quando a maioria dos países do …

O café trouxe consigo a inflação para o Brasil; entre 1824 e 1854, o preço de um homem se multiplicou por dois. Nem o algodão do Norte nem o açúcar do Nordeste, esgotados já os ciclos de prosperidade, podiam pagar aqueles caros escravos. O Brasil se deslocou para o Sul. Além da mão de obra escrava, o café usou os braços dos imigrantes europeus, que entregavam aos proprietários metade de suas colheitas, num regime a meias que ainda hoje prevalece no interior do Brasil. Os turistas que hoje em dia atravessam os bosques da Tijuca para ir nadar nas águas da Barra ignoram que ali, nas montanhas que cercam o Rio de Janeiro, houve grandes cafezais já faz mais de um século. Pelos flancos da serra, as plantações, em sua desesperada busca do húmus de novas terras virgens, rumaram para São Paulo. Já agonizava o século quando os latifundiários cafezistas, convertidos na nova elite social do Brasil, apontaram os lápis e fizeram as contas: os salários de subsistência eram mais baratos do que a compra e a manutenção dos escassos escravos. Aboliu-se a escravidão em 1888, e assim se inauguraram as formas combinadas de servidão feudal e trabalho assalariado que persistem nos dias atuais. Legiões de braceiros “livres” acompanhariam, desde então, a peregrinação do café. O vale do rio Paraíba se tornou a zona mais rica do país, mas logo foi devastado por essa planta perecedoura que, cultivada num sistema destrutivo, ia deixando em seu rastro matas arrasadas, reservas naturais esgotadas e uma decadência geral. A erosão arruinava sem piedade as terras anteriormente intatas, e de saque em saque ia baixando seus rendimentos, debilitando as plantas e tornando-as vulneráveis às pragas. O latifúndio cafezista invadiu a vasta meseta purpúrea a ocidente de São Paulo; com métodos de exploração menos bestiais, transformou-a num “mar de café”, e continuou avançando para oeste. Chegou às ribeiras do Paraná; colidindo com as savanas do Mato Grosso, desviou-se para o sul e, nos últimos anos, retomou a marcha para o oeste, já ultrapassando as fronteiras do Paraguai.

As Veias Abertas da América Latina by  (Page 134 - 135)

Eduardo Galeano: As Veias Abertas da América Latina (Paperback, Português language, 2010, L&PM) No rating

Remontando a 1970, sua primeira edição, atualizada em 1977, quando a maioria dos países do …

O açúcar do trópico latino-americano deu grande impulso à acumulação de capitais para o desenvolvimento industrial da Inglaterra, França, Holanda e também Estados Unidos, ao mesmo tempo em que mutilou a economia do nordeste do Brasil e das ilhas do Caribe, e selou a ruína histórica da África. O comércio triangular entre Europa, África e América teve por viga mestra o tráfico de escravos com destino às plantações de açúcar.

As Veias Abertas da América Latina by  (Page 111)

Eduardo Galeano: As Veias Abertas da América Latina (Paperback, Português language, 2010, L&PM) No rating

Remontando a 1970, sua primeira edição, atualizada em 1977, quando a maioria dos países do …

Quando caiu Batista, Cuba vendia quase todo o seu açúcar para os Estados Unidos. Cinco anos antes, um jovem advogado revolucionário havia profetizado acertadamente, diante de quem o julgava pelo assalto ao quartel Moncada, que a história o absolveria; ele dissera em sua vibrante defesa: “Cuba continua sendo uma feitoria produtora de matéria-prima. Nós exportamos açúcar para importar caramelos”[3]. Cuba comprava dos Estados Unidos não só os automóveis e as máquinas, os produtos químicos, o papel e o vestuário, mas também arroz e feijão, alho e cebolas, banha, carne e algodão. Vinham sorvetes de Miami, pães de Atlanta e até ceias de luxo de Paris. O país do açúcar importava cerca da metade das frutas e verduras que consumia, embora apenas a terça parte de sua população ativa tivesse trabalho permanente e a metade das terras das centrais açucareiras fossem extensões baldias onde as empresas nada produziam[4]. Treze engenhos norte-americanos dispunham de mais de 47 por cento da área açucareira total e faturavam ao redor de 180 milhões de dólares por safra. A riqueza do subsolo – níquel, ferro, cobre, manganês, cromo, tungstênio – fazia parte das reservas estratégicas dos Estados Unidos, cujas empresas exploravam os minerais tão só de acordo com as variáveis urgências do exército e da indústria do norte. Em 1958, havia em Cuba mais prostitutas registradas do que operários mineiros[5]. Um milhão e meio de cubanos sofriam desemprego total ou parcial, segundo investigações de Seuret y Pino, citadas por Núñez Jiménez.

A economia do país movia-se ao ritmo das safras. O poder de compra das exportações cubanas entre 1952 e 1956 não superava o nível de 30 anos antes[6], embora as necessidades de divisas fossem muito maiores. Nos anos 30, quando a crise consolidou a dependência da economia cubana em lugar de contribuir para rompê-la, chegara-se ao cúmulo de desmontar fábricas recém-instaladas para vendê-las a outros países. Quando triunfou a revolução, no primeiro dia de 1959, o desenvolvimento industrial de Cuba era muito pobre e lento, mais da metade da produção estava concentrada em Havana e as poucas fábricas com tecnologia moderna eram telecomandadas dos Estados Unidos. Um economista cubano, Regino Boti, coautor das teses econômicas dos guerrilheiros da serra, cita o exemplo de uma filial da Nestlé que produzia leite condensado em Bayamo: “Em caso de acidente, o técnico telefonava para Connecticut e informava que em seu setor tal ou qual coisa deixara de funcionar. Sem demora recebia as instruções sobre as providências cabíveis e as tomava mecanicamente (...). Se a operação não resolvesse, quatro horas depois chegava um avião com uma equipe de especialistas de alta qualificação que arrumava tudo. Depois da nacionalização já não se podia ligar para pedir socorro, e os raros técnicos que tinham condições de reparar defeitos secundários tinham ido embora.”[7] O testemunho ilustra cabalmente as dificuldades que a revolução encontrou desde que se lançou à aventura de converter a colônia em pátria.

Cuba tinha as pernas cortadas pelo estatuto da dependência e não lhe foi nada fácil tratar de andar por conta própria. Em 1958, metade das crianças cubanas não ia à escola, mas a ignorância, como várias vezes denunciou Fidel Castro, era muito maior e mais grave do que o analfabetismo. A grande campanha de 1961 mobilizou um exército de jovens voluntários para ensinar todos os cubanos a ler e escrever, e os resultados assombraram o mundo: atualmente, segundo o Escritório Internacional de Educação da UNESCO, Cuba apresenta a menor porcentagem de analfabetos e a maior porcentagem de população escolar, primária e secundária, da América Latina. No entanto, a herança maldita da ignorância não pode ser superada de um dia para outro – tampouco em doze anos. A falta de quadros técnicos capazes, a incompetência da administração, a desorganização do aparato produtivo e a temerosa resistência à imaginação criadora e à liberdade de decisão continuam interpondo obstáculos ao desenvolvimento do socialismo. Mas a despeito de todo o sistema de impotências, forjado por quatro séculos e meio de história da opressão, Cuba está nascendo de novo, com um entusiasmo que não cessa: multiplica suas forças, alegremente, ante os obstáculos.

As Veias Abertas da América Latina by  (Page 103 - 105)

Eduardo Galeano: As Veias Abertas da América Latina (Paperback, Português language, 2010, L&PM) No rating

Remontando a 1970, sua primeira edição, atualizada em 1977, quando a maioria dos países do …

Os cronistas de outros tempos diziam que era possível percorrer Cuba de ponta a ponta à sombra das palmeiras gigantes e das frondosas matas, onde abundavam a caoba e o cedro, o ébano e os dagames. É possível admirar as madeiras preciosas de Cuba nas mesas e nas janelas do Escorial ou nas portas do palácio real de Madri, mas a invasão da cana fez arder em Cuba, com vários incêndios sucessivos, as melhores matas virgens entre as quantas que antes cobriam seu solo. Nos mesmos anos em que assolava sua própria floresta, Cuba se tornava o principal país comprador de madeira dos Estados Unidos. A cultura extensiva da cana, cultura de rapina, implicou não só a morte das matas, mas também, a longo prazo, “a morte da fabulosa fertilidade da ilha”[2]. O mato era entregue às chamas, e a erosão logo mordia os solos indefesos; milhares de riachos secaram. Atualmente, o rendimento por hectare nas plantações açucareiras de Cuba é três vezes inferior ao do Peru, e quatro vezes e meia inferior ao do Havaí[3]. A irrigação e a fertilização da terra são tarefas prioritárias da Revolução Cubana. Multiplicam-se as represas, grandes e pequenas, enquanto se canalizam os campos e se espalham os adubos sobre as castigadas terras.

As Veias Abertas da América Latina by  (Page 98 - 99)

Eduardo Galeano: As Veias Abertas da América Latina (Paperback, Português language, 2010, L&PM) No rating

Remontando a 1970, sua primeira edição, atualizada em 1977, quando a maioria dos países do …

Barbados foi a primeira ilha do Caribe em que se cultivou o açúcar para a exportação em grande quantidade, isto em 1641, ainda que anteriormente os espanhóis tivessem plantado cana na Dominicana e em Cuba. Foram os holandeses, como vimos, que introduziram as plantações na minúscula ilha britânica; em 1666 já havia em Barbados 800 plantações de açúcar e mais de 80 mil escravos. Vertical e horizontalmente ocupada pelo latifúndio nascente, Barbados não teve melhor sorte do que o Nordeste do Brasil. Antes, a ilha desfrutava a policultura; produzia, em pequenas propriedades, algodão e tabaco, laranjas, vacas e porcos. Os canaviais devoraram as culturas agrícolas e devastaram as densas matas, em nome de um apogeu que resultou efêmero. Rapidamente a ilha descobriu que seus solos estavam esgotados, que não tinha como alimentar sua população e que estava produzindo açúcar com preços fora de concorrência.[13]

As Veias Abertas da América Latina by  (Page 95)

Eduardo Galeano: As Veias Abertas da América Latina (Paperback, Português language, 2010, L&PM) No rating

Remontando a 1970, sua primeira edição, atualizada em 1977, quando a maioria dos países do …

“Pensareis talvez, senhores”, dizia Karl Marx em 1848, “que a produção de café e açúcar é o destino natural das Índias Ocidentais. Há dois séculos, a natureza, que nada tem a ver com o comércio, não plantara ali a árvore do café e tampouco a cana-de-açúcar”.[12] A divisão internacional do trabalho não se estruturou por obra e graça do Espírito Santo, mas através dos homens ou, mais precisamente, como efeito do desenvolvimento mundial do capitalismo.

As Veias Abertas da América Latina by  (Page 95)

Eduardo Galeano: As Veias Abertas da América Latina (Paperback, Português language, 2010, L&PM) No rating

Remontando a 1970, sua primeira edição, atualizada em 1977, quando a maioria dos países do …

O açúcar arrasou o Nordeste. A úmida faixa litorânea, bem regada pelas chuvas, tinha um solo de grande fertilidade, muito rico em húmus e sais minerais, coberto de matas da Bahia ao Ceará. Esta região de matas tropicais se transformou, como disse Josué de Castro, numa região de savanas[3]. Naturalmente nascida para produzir alimentos, passou a ser uma região de fome. Onde tudo brotava com vigor exuberante, o latifúndio açucareiro, destrutivo e avassalador, deixou rochas estéreis, solos lavados e terras erodidas. Antes tinham sido feitas ali plantações de laranjeiras e mangueiras, que “logo foram abandonadas à própria sorte e reduzidas a pequenos pomares em torno da casa do dono do engenho, exclusivamente reservados para a família do plantador branco”[4]. Os incêndios, que abriam a terra para os canaviais, devastaram as matas e com elas a fauna; desapareceram os veados, os javalis, os tapires, os coelhos, as pacas e os tatus. O tapete vegetal, a fauna e a flora foram sacrificados, nos altares da monocultura, à cana-de-açúcar. A produção extensiva esgotou rapidamente os solos.

As Veias Abertas da América Latina by  (Page 91)