Em nossos dias, os campos de Minas Gerais são, como os do Nordeste, reinos do latifúndio e dos “coronéis de fazenda”, impertérritos bastiões do atraso.
— As Veias Abertas da América Latina by Eduardo Galeano (Page 85)
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Em nossos dias, os campos de Minas Gerais são, como os do Nordeste, reinos do latifúndio e dos “coronéis de fazenda”, impertérritos bastiões do atraso.
— As Veias Abertas da América Latina by Eduardo Galeano (Page 85)
A caça aos índios foi desencadeada, nos últimos anos, com furiosa crueldade; a maior floresta do mundo, gigantesco espaço tropical aberto à lenda e à aventura, converteu-se, simultaneamente, no cenário de um novo sonho americano. Em ritmo de conquista, homens e empresas dos Estados Unidos avançaram sobre a Amazônia como se fosse um novo Far West. Essa invasão norte-americana incendiou como nunca a cobiça dos aventureiros brasileiros. Os índios morrem sem deixar rastro e as terras são vendidas em dólares aos novos interessados. O ouro e outros minerais de valor, a madeira e a borracha, riquezas cujo valor comercial os nativos ignoram, aparecem vinculadas aos resultados de cada uma das escassas investigações que se procederam. Sabe-se que os indígenas foram metralhados desde helicópteros e pequenos aviões, que lhes foi inoculado o vírus da varíola, que foi lançado dinamite sobre suas aldeias e que lhes foram presenteados açúcar misturado com estricnina e sal com arsênico. O próprio diretor do Serviço de Proteção aos Índios, designado pela ditadura de Castelo Branco para sanear a administração, foi acusado, com provas, de cometer 42 tipos diferentes de crimes contra os índios. O escândalo veio a público em 1968.
— As Veias Abertas da América Latina by Eduardo Galeano (Page 75 - 76)
Atualmente, não se salvam nem sequer os indígenas que vivem isolados nos esconsos da selva. No princípio do século, ainda sobreviviam 230 tribos no Brasil; desde então desapareceram 90, apagadas do planeta por obra e graça das armas de fogo e dos micróbios. Violência e doença, batedores da civilização: o contato com o homem branco, para o indígena, continua sendo o contato com a morte. As disposições legais que, desde 1537, protegem os índios do Brasil, voltaram-se contra eles. De acordo com os textos de todas as constituições brasileiras, são “os primitivos e naturais senhores” das terras que ocupam. Ocorre que, quanto mais ricas são essas terras virgens, mais grave se torna a ameaça que pende sobre suas vidas; a generosidade da natureza os condena à espoliação e ao crime.
— As Veias Abertas da América Latina by Eduardo Galeano (Page 75)
Os turistas adoram fotografar os indígenas do altiplano vestidos com suas roupas típicas. Ignoram, por certo, que a atual vestimenta indígena foi imposta por Carlos III em fins do século XVIII. Os trajes femininos que os espanhóis obrigaram as índias a usar eram cópias dos vestidos regionais das lavradoras estremenhas, andaluzas e bascas, e outro tanto ocorre com o penteado das índias, repartido ao meio, imposto pelo vice-rei Toledo. O mesmo não ocorre com o consumo de coca, que não nasceu com os espanhóis: já existia no tempo dos incas. A coca, no entanto, era distribuída com parcimônia; o governo incaico a monopolizava e só permitia seu uso para fins rituais ou para o duro trabalho nas minas. Os espanhóis estimularam intensamente o consumo da coca. Era um esplêndido negócio. No século XVI, em Potosí, gastava-se tanto em roupas europeias quanto em coca para os oprimidos. Em Cuzco, 400 mercadores espanhóis viviam do tráfico de coca; nas minas de prata de Potosí entravam anualmente 100 mil cestos com 1 milhão de quilos de folhas de coca. A igreja arrecadava impostos da droga. O inca Garcilaso de la Vega nos conta, em seus “comentários reais”, que a maior parte da renda do bispo, dos cônegos e demais ministros da igreja de Cuzco provinha dos dízimos sobre a coca, e que o transporte e a venda deste produto enriqueciam muitos espanhóis. Com as escassas moedas que obtinham em troca do trabalho, os índios compravam folhas de coca em vez de comida: mastigando-as, podiam suportar melhor as mortais tarefas impostas, ainda que ao preço de abreviar a vida. Além da coca, os indígenas consumiam aguardente, e seus amos se queixavam da propagação de “vícios maléficos”. Nesta altura do século XXI, os indígenas de Potosí continuam mascando coca para matar a fome e se matar, e continuam queimando as tripas com álcool puro. São as estéreis desforras dos condenados. Nas minas bolivianas, os operários ainda chamam de mita o seu salário.
— As Veias Abertas da América Latina by Eduardo Galeano (Page 73)
A economia colonial latino-americana valeu-se da maior concentração de força de trabalho até então conhecida, para tornar possível a maior concentração de riqueza com que jamais contou qualquer civilização na história mundial.
— As Veias Abertas da América Latina by Eduardo Galeano (Page 62)
“A dupla tragédia dos países em desenvolvimento consiste em que não só foram vítimas desse processo de concentração internacional, como também foram posteriormente obrigados a compensar seu grande atraso industrial, isto é, realizar a acumulação originária de capital industrial num mundo inundado de artigos manufaturados por uma indústria já madura, a ocidental”
— As Veias Abertas da América Latina by Eduardo Galeano (Page 50)
A América era então uma vasta boca de mina centralizada, sobretudo, em Potosí. Alguns escritores bolivianos, inflamados de excessivo entusiasmo, afirmam que em três séculos a Espanha recebeu metal suficiente como para estender uma ponte de prata desde a grimpa da montanha à porta do palácio real no outro lado do oceano. A imagem, por certo, é obra da fantasia, mas sempre alude a uma realidade que, de fato, parece inventada: o fluxo da prata alcançou gigantescas proporções. A farta exportação clandestina da prata americana, que de contrabando seguia para as Filipinas, para a China e para a própria Espanha, não figura nos cálculos de Earl J. Hamilton[2], que no entanto, a partir de dados obtidos na Casa de Contratação, oferece, em sua conhecida obra sobre o tema, cifras assombrosas. Entre 1503 e 1660, desembarcaram no porto de Sevilha 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata. A prata levada para a Espanha em pouco mais de um século e meio excedia três vezes o total das reservas europeias. E essas cifras não incluem o contrabando.
Os metais arrebatados aos novos domínios coloniais estimularam o desenvolvimento europeu e até se pode dizer que o tornaram possível. Nem sequer os efeitos da conquista dos tesouros persas que Alexandre Magno derramou sobre o mundo helênico poderiam ser comparados com a magnitude dessa formidável contribuição da América para o progresso alheio. Mas não para o progresso da Espanha, ainda que lhe pertencessem as fontes da prata americana. Como se dizia no século XVII, “a Espanha é como a boca que recebe os alimentos, mastiga-os e os tritura para logo enviá-los aos demais órgãos, e deles não retém senão um gosto furtivo ou as partículas que casualmente aderem aos seus dentes”[3]. Os espanhóis tinham a vaca, mas quem bebia o leite eram os outros. Os credores do reino, estrangeiros em sua maioria, sistematicamente esvaziavam as arcas da Casa de Contratação de Sevilha, encarregada de guardar sob três chaves, em três diferentes mãos, os tesouros da América.
A Coroa estava hipotecada. Quase todos os carregamentos de prata eram antecipadamente cedidos a banqueiros alemães, genoveses, flamengos e espanhóis[4]. Também grande parte dos impostos tinha a mesma sorte: em 1543, 65 por cento do total das rendas reais se destinava ao pagamento das anuidades dos títulos da dívida. Tão só em mínima proporção a prata americana era aplicada na economia espanhola: embora fosse formalmente registrada em Sevilha, ia parar nas mãos dos Függer, poderosos banqueiros que tinham adiantado para o Papa os fundos necessários para a conclusão da catedral de São Pedro, e de outros grandes prestamistas da época, no estilo dos Welser, dos Shetz ou dos Grimaldi. A prata também se destinava ao pagamento das exportações de mercadorias não espanholas para o Novo Mundo.
Aquele império rico tinha uma metrópole pobre, ainda que nela a ilusão de prosperidade levantasse bolhas cada vez mais inchadas: a Coroa abria frentes de guerra por todos os lados, enquanto a aristocracia se dedicava ao esbanjamento e se multiplicavam em solo espanhol os padres e os guerreiros, os nobres e os mendigos, ao mesmo e frenético tempo em que aumentavam os preços e as taxas de juro do dinheiro. A indústria morria ao nascer naquele reino de vastos latifúndios estéreis, e a enferma economia espanhola não podia resistir ao brusco impacto da alta demanda de alimentos e mercadorias, a inevitável consequência da expansão colonial. O grande aumento dos gastos públicos e a asfixiante pressão das necessidades de consumo nas possessões de ultramar agravavam o déficit comercial e desencadeavam, a galope, a inflação. Colbert escrevia: “Quanto mais comércio um estado tem com os espanhóis, mais prata tem”. Havia uma dura luta europeia pela conquista do mercado espanhol, que implicava o mercado e a prata da América. Um memorial francês de fins do século XVII nos permite saber que a Espanha, então, só predominava em 5 por cento do comércio com “suas” possessões coloniais do outro lado do oceano, apesar da ilusão jurídica do monopólio: cerca de uma terça parte do total estava na mão de holandeses e flamengos, uma quarta parte pertencia aos franceses, os genoveses controlavam mais de 20 por cento, os ingleses dez e os demais um pouco menos[5]. A América era um negócio europeu.
— As Veias Abertas da América Latina by Eduardo Galeano (Page 43 - 45)
Bactérias e vírus foram os aliados mais eficazes. Os europeus traziam, como pragas bíblicas, a varíola e o tétano, várias enfermidades pulmonares, intestinais e venéreas, o tracoma, o tifo, a lepra, a febre amarela, as cáries que apodreciam as bocas. A varíola foi a primeira a aparecer. Não seria um castigo sobrenatural aquela epidemia desconhecida e repugnante que provocava a febre e descompunha a carne? “Lá foram se meter em Tlaxcala”, narra um testemunho indígena, “então se espalhou a epidemia: tosse, grãos ardentes, que queimam”. E outro: “A muitos deu morte a pegajosa, pesada, dura doença dos grãos”. Os índios morriam como moscas; seus organismos não opunham resistência às novas enfermidades, e os que sobreviviam ficavam debilitados e inúteis. O antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro estima que mais de metade da população aborígine da América, Austrália e ilhas oceânicas morreu contaminada logo ao primeiro contato com os homens brancos
— As Veias Abertas da América Latina by Eduardo Galeano (Page 37 - 38)
Na Idade Média, uma bolsa de pimenta valia mais do que a vida de um homem, mas o ouro e a prata eram as chaves que o Renascimento usava para abrir as portas do Paraíso no céu e as portas do mercantilismo capitalista na Terra. A epopeia de espanhóis e portugueses na América combinou a propagação da fé cristã com a usurpação e o saque das riquezas indígenas. O poder europeu se irradiava para abraçar o mundo. As terras virgens, densas de selvas e perigos, instigavam a cobiça de capitães, cavaleiros fidalgos e soldados em farrapos, que se lançavam à conquista de espetaculares butins de guerra: acreditavam na glória, “o sol dos mortos”, e na audácia. “Os ousados a fortuna ajuda”, dizia Cortez. O próprio Cortez havia hipotecado todos os seus bens pessoais para equipar a expedição do México. Salvo raras exceções, como foi o caso de Colombo e Magalhães, as aventuras não eram custeadas pelo Estado, mas pelos próprios conquistadores ou por mercadores e banqueiros que os financiavam.
— As Veias Abertas da América Latina by Eduardo Galeano (Page 32 - 33)
Tudo nos é proibido, exceto cruzar os braços? A pobreza não está escrita nas estrelas, o subdesenvolvimento não é fruto de um obscuro desígnio de Deus. Correm anos de revolução, tempos de redenção. As classes dominantes põem as barbas de molho e, ao mesmo tempo, anunciam o inferno para todos. Em certo sentido, a direita tem razão quando se identifica com a tranquilidade e com a ordem. A ordem é a diuturna humilhação das maiorias, mas sempre é uma ordem – a tranquilidade de que a injustiça siga sendo injusta e a fome faminta. Se o futuro se converte numa caixa de surpresas, o conservador grita, com toda razão: “Me traíram”. E os ideólogos da impotência, os escravos que se contemplam com os olhos do amo, não demoram em fazer ouvir seus clamores. A águia de bronze do Maine, derrubada no dia da vitória da revolução cubana, jaz agora abandonada, com as asas partidas, sob um portal do bairro velho de Havana. De Cuba em diante, outros países também iniciaram por distintas vias e distintos meios a experiência de mudança: a perpetuação da atual ordem de coisas é a perpetuação do crime.
— As Veias Abertas da América Latina by Eduardo Galeano (Page 24)
Na América Latina, é mais higiênico e eficaz matar guerrilheiros no útero do que nas montanhas ou nas ruas.
— As Veias Abertas da América Latina by Eduardo Galeano (Page 23)
São secretas as matanças da miséria na América Latina. A cada ano, silenciosamente, sem estrépito algum, explodem três bombas de Hiroshima sobre esses povos que têm o costume de sofrer de boca calada. Essa violência sistemática, não aparente, mas real, vem aumentando: seus crimes não são noticiados pelos diários populares, mas pelas estatísticas da FAO. Ball diz que a impunidade ainda é possível porque os pobres não podem desencadear a guerra mundial, mas o império se preocupa: incapaz de multiplicar os pães, faz o possível para suprimir os comensais. “Combata a pobreza, mate um mendigo”, grafitou um mestre do humor negro num muro de La Paz. O que propõem os herdeiros de Malthus senão matar todos os futuros mendigos antes que nasçam? Robert McNamara, o presidente do Banco Mundial que tinha sido presidente da Ford e Secretário da Defesa, afirma que a explosão demográfica constitui o maior obstáculo ao progresso da América Latina, e anuncia que o Banco Mundial, em seus empréstimos, dará preferência aos países que executarem planos de controle da natalidade. McNamara constata, com lástima, que o cérebro dos pobres pensa 25 por cento menos, e os tecnocratas do Banco Mundial (que já nasceram) fazem zumbir os computadores e geram intrincados cálculos sobre as vantagens de não nascer. “Se um país em desenvolvimento, que tem uma renda média per capita de 150 a 200 dólares anuais, puder reduzir sua fertilidade em 50 por cento num período de 25 anos, ao cabo de 30 anos sua renda per capita, quando menos, será 40 por cento superior ao nível que teria alcançado sem reduzir os nascimentos, e duas vezes maior ao cabo de 60 anos”, assegura um dos documentos do organismo. Tornou-se célebre a frase de Lyndon Johnson: “Cinco dólares investidos contra o crescimento da população são mais eficazes do que 100 investidos no crescimento econômico”. Dwight Eisenhower prognosticou que, se os habitantes da terra continuarem a se multiplicar no mesmo ritmo, não só se aguçará o perigo da revolução como também se produzirá “uma degradação no nível de vida de todos os povos, o nosso inclusive”.
— As Veias Abertas da América Latina by Eduardo Galeano (Page 21 - 22)
O capitalismo central pode dar-se ao luxo de criar seus próprios mitos e acreditar neles, mas mitos não se comem, bem sabem os países pobres que constituem o vasto capitalismo periférico.
— As Veias Abertas da América Latina by Eduardo Galeano (Page 19)
Nossa riqueza sempre gerou nossa pobreza por nutrir a prosperidade alheia: os impérios e seus beleguins nativos. Na alquimia colonial e neocolonial o ouro se transfigura em sucata, os alimentos em veneno
— As Veias Abertas da América Latina by Eduardo Galeano (Page 18 - 19)
Pelo caminho perdemos até o direito de nos chamarmos americanos, embora os haitianos e os cubanos já estivessem inscritos na História, como novos povos, um século antes que os peregrinos do Mayflower se estabelecessem nas costas de Plymouth. Agora, para o mundo, América é tão só os Estados Unidos, e nós quando muito habitamos uma sub-América, uma América de segunda classe, de nebulosa identidade.
— As Veias Abertas da América Latina by Eduardo Galeano (Page 18)